
Ao princípio tudo eram épicos.
As vias eram grandes de mais, difíceis de mais, sujas de mais, boas de mais para lhes resistirmos. Nós éramos lentos de mais, inexperientes de mais, ambiciosos de mais para lhes resistirmos. O resultado só podia ser um: grandes épicos.
Épico em português vem de epopeia, que pode ser, para nossa conveniência, sinónimo de grande aventura. Na tradição anglo-saxónica, que aqui utilizo, “epic” significa também uma grande aventura, geralmente associada a bivaques inesperados na parede ou montanha, tempestades, situações imprevisíveis que resultam em quase desgraças que felizmente não se concretizam, deixando apenas algumas mossas e intensas impressões gravadas para sempre na memória dos protagonistas. Estes são os ingredientes dos “bons épicos”. Os maus também existem mas são bons para esquecer. As tragédias só são boas histórias para os outros.
Na escalada/alpinismo anglo-saxónico os épicos são levados a sério. A revista Climbing, por exemplo, tem números especiais só dedicados a eles com as histórias mais mirabolantes. Se existisse um rei dos épicos, Joe Simpson não teria dificuldade em ser coroado. Conhecidíssimo pelo ultra-mega-épico dos Andes, é no entanto na sua autobiografia, This Game OF Ghosts, que encontramos as mais deliciosas e incríveis aventuras, e claro épicos inacreditáveis. Mas, para se ter um épico, não é preciso quase ressuscitar dos mortos como o Joe Simpson no Siula Grande, basta ser inexperiente quanto baste e ter azar com a meteorologia.
Depois da nossa quase escalada da Meadinha, precisávamos de algo grandioso que eclipsasse por uns tempos a frustração causada pela tentativa falhada. Um pouco mais abaixo no vale ficava a Nédia, a maior parede de Portugal. Perfeito, a título de grandiosidade não se podia pedir, nem havia, mais. O facto de a Nédia ser uma espécie de encosta com granito projectado, era um detalhe, aquilo tinha cerca de vinte largos para escalar com corda e a última parte torna-se quase vertical, e acima de tudo parecia, e era, selvagem como o caraças.
Os ingredientes eram apetitosos e algo inquietantes: aproximação excruciante, reuniões onde a única protecção era uma martelo entalado, passagens com “passos de homem” na mais pura tradição alpina e finalmente uma saída selvagem até voltar à “civilização”.
Nada disto nos demoveu, estávamos à altura do desafio, tínhamos o martelo e tudo. Só não nos decidíamos por que pés-de-gato usar, “Vão dois pares para cada um, e não se fala mais nisso!”, “Sim, parece ajuizado”. Comida suficiente, água de reserva e roupa de abrigo eram pormenores secundários que pensar neles e calcula-los só atrapalharia os nossos planos grandiosos e tiraria brilho à nossa ansiada aventura, alem de mais pesavam e ocupavam espaço na nossa já atulhada, de bens essenciais, mochila.
A nossa estratégia resumiu-se em procurar um sitio para dormir o mais perto possível do inicio da marcha de aproximação. A escolha caiu sobre Tibo, a aldeia onde se deixa o carro, onde uma casa em construção serviu na perfeição para residência nocturna.
Madrugamos. Ainda era noite quando fomos deixando para traz o nosso refúgio improvisado. Atravessamos a aldeia adormecida, acossados pelos latidos de dezenas de cães furiosos. Rapidamente chegamos ao rio, que decidimos atravessar cedo de mais, uma primeira decisão errada, numa série de várias que fatalmente traçariam o caminho do épico. Às apalpadelas corrigimos a trajectória encontrando um caminho que seguia ao longo da margem até estarmos em linha com a parede, aqui teríamos de abandonar os caminhos e navegar no mato até há base da parede, seria um presságio para o que aí vinha: até à tarde do dia seguinte não veríamos mais caminhos e “comeríamos” mais mato do que alguma vez sonháramos.
Mas eis que finalmente tínhamos alguma rocha pela frente, “ livres do mato!” exultamos inocentemente. A via – dos Narizes, para os poucos conhecedores – nos primeiros dois terços é muito tranquila, super tombada, às vezes a um ponto em que deixamos de escalar e ridiculamente passamos a andar. Passa por um jardim a meio e depois entra numa espécie de canal até que, por fim, chega a terrenos um pouco mais verticais.
O dia já ia bem avançado quando chegamos à base da famosa fissura do “passo de homem”. Estávamos a torrar, tínhamos estado a escalar todo o dia à chapa do sol, e já quase não tínhamos água. Água que em breve seria o nosso principal problema. Sem darmos conta, o tempo mudara, e preparava-se uma típica tempestade de Verão de fim de tarde. Mas a nossa preocupação do momento era chegar ao spit que era a única protecção do offwidth que tínhamos pela frente. Sem friends gigantes, ou tubos, resolvemos usar mesmo o método original: um trepa para cima do outro e meia fissura fica feita e o spit protegido, arrasta daqui arrasta dali e estamos já perto da saída, tendo pela frente uma série de placas. Entretanto o céu fechara completamente e começa a chover copiosamente. Apanhados na ratoeira, só temos uma saída, o Rui decide avançar, pois parte da placa fica debaixo de uma espécie de tecto, meio fora meio dentro, já com a chuva a cair com intensidade, conseguiu sair. Ainda hoje não sei como conseguiu escalar aquela placa ensopada praticamente sem protecção nenhuma. Mas o que é facto é que conseguiu e estávamos fora da via e no cimo. A tradicional exultação e alívio de sair de uma via grande estavam, por assim dizer, diluídas na montanha de água que nos caía em cima. Ensopados, literalmente, até aos ossos, não tínhamos mais nada para vestir alem de uma sweatshirt, e para ajudar à festa estava a anoitecer e não sabíamos para onde ir ou seja não sabíamos como sair daquele monte.
Começamos a andar, como dois zombies na noite, errantes e sem destino debaixo de uma chuva diluviana. Ao fim de algum tempo, desesperados, começamos à procura de um abrigo ou algo que se assemelhasse. Não encontrando nada, encostamo-nos a um calhau e colocamos uns ramos muito mal amanhados por cima de nós, pelo menos agora a chuva não nos caía na cabeça, só nas pernas e nos pés. E eis que estavam reunidas as condições para um bivaque de emergência na montanha. A noite nestas circunstâncias é uma espécie de insónia forçada só que ao invés de rebolar indolentemente na cama à procura de uma melhor posição, não paramos de tremer e à medida que a hipotermia se tenta instalar vamos contando o lento passar das horas sempre com a secreta esperança de começar ver a luz da madrugada no horizonte. A meio da noite o Rui decide pegar fogo às folhas que estão debaixo de nós, agarramo-nos logo a esse objectivo que rapidamente passou ao topo das nossas prioridades. Finalmente, quando já sonhávamos com uma lareira, começou a sair fumo das folhas molhadas, fogo nem velo, mas saía fumo o que não era mau, rapidamente transformamo-nos em fumeiros humanos disputando avidamente o lugar por cima da fumarada. Por fim lá nasceu o dia e como sempre acontece depois de uma tempestade de Verão, completamente limpo. Procuramos um sítio alto e exposto e aos poucos fomos aquecendo e secando a roupa e a tralha. À medida que o dia ia aquecendo, rapidamente percebemos que iríamos enfrentar outro problema: não bebíamos nada desde o dia anterior, não tínhamos água nenhuma, nem onde a ir buscar. Uma situação no mínimo bizarra depois de estar debaixo de uma tempestade.
Começamos a andar para Norte na cumeada, sabendo apenas que teríamos de descer a determinada altura para o vale da Peneda, só não víamos como. Sempre que tentávamos descer éramos engolidos pelo mato, e tínhamos de voltar à cumeada, começávamos a desesperar, o cansaço, a fome e principalmente a sede iam tomando conta do nosso discernimento. A fome aguenta-se bem, mas a sede, em muito pouco tempo, torna a situação extrema, exacerbada pelo calor excruciante.
De repente, face a mais uma descida de aspecto intransponível, o Rui diz, “ Pá, não quero saber, vou usar o método do meu primo!”. O “método do primo” era uma muito discutida, entre nós, teoria que no monte em última escolha a linha recta é a melhor opção. E, sem mais, atirou-se literalmente ao mato começando a descer a direito. O mato, uma mistura de giestas de mais de dois metros, silvas e árvores caídas, era de tal maneira denso que ele desapareceu de vista num instante.
Durante uns segundos, que pareceram eternos, fiquei isolado no cimo do monte, bloqueado e sem saber o que fazer. Sentindo um lento desespero a crescer. Antes de quebrar e começar a chorar cheio de pena de mim mesmo, grito: “ Foda-se, espera aí!”.
O que se seguiu foi a mais louca descida que jamais fiz, atiramo-nos, como kamikazes, a correr pela encosta abaixo, rasgados e arranhados pelas silvas, tropeçando e caindo nas árvores caídas, às vezes com cambalhotas completas, fomos abrindo com o nosso próprio corpo o caminho. Até que rebolando demos com um tubo preto, “ Eh! isto parece um tubo de água”, desesperadamente começamos a tentar cortar o tubo, mas não tínhamos como, “Espera! deve ter uma emenda”, percorremos o tubo sofregamente e lá estava ela, separamos as duas parte e imediatamente jorrou água em abundância, não sabíamos de onde vinha aquilo, mas era a água mais fresca e deliciosa que alguma vez bebi, que dádiva. Saciada a sede, recompusemo-nos um pouco melhor e já conseguíamos pensar com mais clareza, se andava ali um tubo não devíamos estar longe de um caminho.
A rebolar, literalmente, mais uma vez, caímos em cima do caminho que levava ao vale. Estávamos safos. Quando chegamos ao rio vejo uma poça de água cristalina que, qual miragem, começa a atrair-me como um íman, começo a tira a roupa e só então vou tomando noção de como estávamos: arranhados, esfolados e com a roupa reduzida a trapos, tudo rasgado. Atiro-me à água sem pensar mais. Quando emergi da água gelada, já tudo estava para trás, tudo estava bem e o nosso épico começava já lentamente a ocupar o seu lugar nas finas páginas da memória escritas a fogo ou, neste caso, talvez a água. SM