A não ser que tenham estado reclusos noutro planeta, que não o planeta da escalada, é impossível não terem reparado que está a decorrer, e quase a acabar, aquela que já é apelidada por alguns de “ a escalada do século”: A tentativa, por parte de Tommy Caldwell e Kevin Jorgeson, de escalar em livre a Dawn Wall de uma só vez, porque tecnicamente já está “libertada”, mas seguindo a ética yosemítica, já lá vamos, é preciso faze-la “in a single push”.
Uma vez mais o mundo da escalada gira à volta do “El Cap”. Dir-se-ia que o seu peso gravitacional medido em quilos de história da escalada é tão grande que faz, com todo o mérito, girar o resto do mundo à sua volta.
As coisas levam o seu tempo por ali, a logística é monstruosa, a dificuldade é enorme e ultra específica, as proteções são muitas vezes precárias, a barreira está tão alta que escalar um largo de 8b+ protegido com beak’s parece algo banal nesta via.
Há aqui também uma luta mediática, no munda profissional da escalada é preciso procurar desafios cada vez mais altos e longínquos para os outros, neste caso “os outros” já nem são a população escaladora em geral são os “colegas” profissionais, que os deixem, por uns bons anos, a uma distância segura de forma a poderem gozar o Olimpo sozinhos e com o Olimpo vem um grossa fatia do escasso maná disponível na escalada profissional.
Depois deste parágrafo cínico, vem o parágrafo onírico. É preciso sonhar em grande para conceber esta escalada. E depois de sonhar é preciso agarrar o animal pelos cornos, Tommy Caldwell sendo americano, e não do Barroso ou da Lezíria, recorre ao grande monstro do imaginário literário americano, o Moby Dick. Chama à escalada ou “quest” o seu Moby Dick. O valor simbólico de Moby Dick varia muito conforme o interlocutor, pode ser por exemplo um sonho mortífero, o que até poderia ser adequado. Mas é também o grande romance da perseguição e da obsessão. E nesse aspecto é uma metáfora perfeita com a própria abordagem de TC à via em si. Nada poderia ser mais acertado, perseguir tenazmente um sonho por seis anos, sem ter a mínima certeza que é possível. Eis a grande aventura, a aventura do sonho mortífero e da obsessão, uma aventura física mas talvez mais psicológica, uma vez que se trata de perseguir algo tido como impossível ou quase intangível.
O estilo. A questão ética sobre a escalda livre de grandes paredes está na ordem do dia, com a confusão lançada pelo impasse de KJ no agora famoso largo 15 e a sua infame “presa lâmina de barbear”. Por momentos a confusão imperou, como ficaria se um fizesse tudo e outro menos um ou mais largos? O consenso seria que se TC conseguisse encadear o resto dos largos, e está bem lançado, seria considerada uma escalada em livre limpa, mesmo que tenha escalada alguns largos em top rope. O estilo que estão a adoptar é “team free climb” ou seja um encadeia o largo e o outro faz em top, sem cair também, variando nesta via, por razões que só eles sabem, os largos que cada um faz em top. A realidade é, como é salientado no sempre excelente evening sends, que estes escaladores são dois expoentes máximos da escalada, mesmo em termos éticos, especialmente TC e o que ele decidir estará bem, mesmo que estabeleça um precedente. Depois ficará sempre um caminho ético pela frente, o que significa sempre uma melhoria em termos de estilo do que já foi feito, toda a via encadeada por uma pessoa, por uma pessoa num só dia, à vista, free solo, etc etc ad absurdum…ou não.
Só uma nota de rodapé, o estilo clássico de libertar uma via, e que é o meu preferido pessoalmente, é a via ser considerada escalada em livre quando todos os largos são escalados em livre por pelo menos por um dos escalados da cordada, foi assim que a Salalethé Wall foi libertada por Todd Skinner e Paul Piana. É algo mais centrado no espirito de equipa e de cordada, onde cada um contribuiu com o melhor das suas habilidades e menos centrado no espirito individual tão caro à escalada desportiva.
Wino Tower. A wino tower é um ponto icónico da Dawn wall, é a chave da escalada onde as grandes dificuldades acabam, TC chegou lá primeiro, colocando um ponto final nas dificuldades máximas da via, KJ também já lá está, uma vez ultrapassado o impasse. Vale a pena recordar o grande renegado da escalada Warren Harding, quando nessa mesma plataforma, durante a primeira ascensão recebeu assim os seus pretensos salvadores:
“Good Evening! What can we do for you.”
“We’ve come to rescue you!”
“Really? Come now, get hold of yourselves – have some wine.”
Sem mais. Há nestes quarenta anos que separam as duas ascensões um tal abismo de diferenças que quase parece outra dimensão. Harding já era patrocinado, mas por uma marca de vinhos que lhe fornecia os garrafões de tinto carrascão necessários para a sua sedenta hidratação, TC é visto e vendido como um atleta, quase forçosamente. Um era um mulherengo inveterado, o outro é um dedicado pai de família. Mas ambos têm em comum uma determinação muito, muito incomum que é e foi a base destas duas escaladas. E um é herdeiro do outro, fazendo a transição de um mundo quase analógico, para este frenético mundo tecnológico que vivemos. A escalada de Harding encerrou a chamada época dourada de Yosemite e diz-se que esta fechará outra.
Mediatização mainstream. Outro ponto em comum entre as duas escaladas é a mediatização intensa por meios de comunicação fora do mundo da escalada, a chamada imprensa ou média mainstream. Na altura foi o pseudodrama dos escaladores 27 dias presos na parede e principalmente a sua recusa em serem “salvos” que atraiu a imprensa e notoriamente, para a época, as televisões. Desta vez a presença de um repórter do New York Times no local, que vai fazendo cronicas da ascensão, serviu de motor para a diversificação e o alastrar da coisa. O NYTimes não é um jornal qualquer, é uma referência mundial da boa informação, do qual a outra imprensa anda naturalmente a reboque.
Desta vez, felizmente, nada de trágico se está a passar no El Cap, daí ser estranha a cobertura. Terá o grande público visto a luz e de um momento para o outro interessar-se, e dar opiniões, sobre a melhor forma de colocar adesivo num dedo para agarrar micro presas de forma ainda eficiente ou sobre as nuances éticas da escalada livre em grande parede. Não me parece. E os agora famosos comentários nos artigos do NYT provam bem que não. O facto de aparentemente o editor do jornal ser um escalador ele próprio parece-me um facto um pouco mais relevante, o que mostra outra maneira de a escalada chegar lá. Só que eram precisas Dawn walls semanais para aos poucos os detalhes e minudencias da escalada, do género fora-de-jogo ou Lei Bosman no futebol, fossem entrando na opinião pública. E como se vê esta será a escalda do século e não do mês, por isso, hélas, uma vez acabada, o fenómeno voltará a adormecer na inconsciência colectiva, nada de escalada nos telejornais, estátuas gigantescas de TC e KJ na praça da aldeia, ou o tão desejado olimpismo.
Aventura. À medida que a história se desenrola, e agora caminha para um feliz epílogo, aparecem algumas vozes dissonantes a queixarem-se da ausência de aventura nesta escalada, vale a pena ler esse artigo sobre esse aspecto. Vendo o assunto de forma mais abrangente: o importante não é a ausência de aventura, não parece possível neste momento da evolução da escalada abordar este projecto de forma aventurosa e incerta, mas para onde a escalada caminha. Um caminho para longe da aventura de certeza. Nesse aspecto é uma escalada que reflete na perfeição o zeitgeist, o famoso espirito do tempo… as tácticas desportivas e do bloco a serem levadas para o big-wall, o circo mediático, com os escaladores a estarem constantemente envolvidos num teia de cordas e fotógrafos, dois amigos a servirem de carrejões a levarem mantimentos permanentemente para a parede, o famoso acordar de quatro em quatro horas para hidratar a pele dos dedos. Tudo isto aplana a dimensão do El Cap, torna-o mais humano e menos selvagem, como se hidratassem própria pedra, e a sua história, com um balsamo hidratante e calmante, e transformassem o outrora terrível terreno de jogo para hirsutos e duros tipos numa espécie de spa para metro-escaladores.
Mas, estes gajos são bons de mais, se parece escalada desportiva, é porque são bons de mais, se parece bloco, é porque apertam bem de mais. Malharam de mais, grandes voos em material incerto, partiram pés, amassaram costelas, foram embora de mãos vazias e voltaram com os bolsos cheios de sonhos. Se agora parece fácil e suave, é mesmo assim que as coisas são com os grandes escaladores, fazem o difícil parecer fácil e de caminho o impossível ser possível.
O rapelador despido. A nossa era e o nosso tempo é o tempo dos reality shows, e esta escalada pode ser também o reflexo disso mesmo. A casa/prisão é a parede de Big-Wall na qual os escaladores estão encerrados só podendo sair uma vez o jogo acabado ou seja a via encadeada, constantemente vigiada, equipas penduradas fazem o filme, equipas em terra fotografam exaustivamente, reduzindo a privacidade dos escaladores ao exíguo espaço das suas portledges. A extensa cobertura mediática vai construindo o acontecimento e com um efeito bola de neve vai formando a multidão, atrai turistas e escaladores ao local físico para assistir in loco à acção, mesmo que não consigam ver nada, levando a casos extremos de alienação como o sujeito que apareceu a repelar nu do topo do El Cap sobre a linha de escalada. Esse desejo intenso dos forasteiros de fazerem parte da acção num realty show está muito bem expresso no grande filme italiano, Reality, de Matteo Garrone. Luciano é um exuberante peixeiro napolitano, que, para alem do peixe, vive de pequenos esquemas com a sua mulher, estraga toda a sua vida por um desejo intenso de participar na versão italiana do Big Brother, Il Grand Fratello. Para seu grande desgosto nunca consegue entrar, na cena final consegue infiltrar-se no estúdio e sentando-se num sofá observa por dentro e já não pela televisão os acontecimentos, fazendo parte da acção à força consegue ao fim de muitas peripécias e loucuras uma espécie de apaziguamento final. Tal como Luciano o rapelador nu, também conseguiu fazer parte da acção por escaços minutos.
Esta distorção pelo absurdo da realidade da Dawn wall serve apenas para ilustrar um possível caminho ou um hipotético futuro dos grandes acontecimentos da escalada. O facto de estarmos sempre a ser observados e, pior, potenciarmos essa observação pela exposição mediática que fazemos de nós próprios. Mudará a nossa maneira de actuar, ou mais generalista, mudará o observado. O princípio físico do observador diz-nos que sim. A paranoia como se sabe faz parte do humano, podendo ir de manifestações ligeiras a estados patológicos. Se o ser observado muda a sua acção, pode em virtude da observação a que está sujeito desenvolver a paranoia de que está sempre a ser observado, como no filme, mudando o seu comportamento e transformando-se no processo em algo artificial. Navegar neste mar de equívocos faz parte dos desafios do nosso tempo e esta via, ou acontecimento reflete isso também.
Que grande escalada, a dos seis anos, não esta das três semanas que é apenas a ponta da iceberg. Pode mudar a face da escalada em si e por fim a uma era? Não sei. Sei que o que se está a passar neste preciso momento é absolutamente histórico, em termos de escalada, por isso levanta todas estas questões e desperta toda a atenção ao ponto de eu não conseguir por um ponto final neste artigo sem me lembrar de mais um ângulo relevante ou interessante, mas agora vai ter mesmo que ser. SM
Ilustração: Vitor Baptista
Adorei o artigo! e merecia uma tradução…especialmente o Luciano!!eehhehe abraço
Excelente artigo. Cómico qb e a tocar em vários pontos pertinentes/fulcrais desta “jornada” que ficará para a história.
A semelhança com o BBrother é de loucos, mt bom.
http://www.espacosnaturais.net/yosemite/
Excelente artigo de reflexão sobre a repercussão desta tão mediática ascensão!
Como costume boas reflexões passadas a escrito, que dão pano para mangas, eu acrescentaria alguns pontos sobre aventura e mediatização mainstream.
Este parece-me mais um perfeito exemplo do “americam dream”- o homem com um sonho, dedicado, perseverante,prepara-se, luta, cai, levanta-se, prepara-se ainda melhor, não desiste e finalmente alcança. É a América in its finest moment.É também a jove nação americana a produzir mais um herói americano and its sidekick -Batman&Robin, Lone Ranger and Tonto, Tommy e Kevin.
Quanto ao estilo, enfim o escalador do século XXI venceu finalmente a gravidade. A G force foi domada, alias como um Jedi (“Use the G-force, Tommy!)a forca G é usada agora em seu proveito. Falo claro da força do 3G e do 4G.
Escalar em melhor estilo no século XXI será fazer as coisas à maneira da Silvia Vidal, mete a petate às costas, desliga o telemóvel, escala até se fartar (nunca menos de 30 dias em parede) e quando volta (se voltar=aventura) logo liga para casa a dizer “Olá, estou bem!”. A escala mais pura no sec. XXI, (a escalada em solo=ropeless) terá que ser também redefinida para Wireless. Mas eu concordo com a tua visão de Zeigeist e neste novo mundo de extremismos o purismo será sempre relegado para segundo plano.
Quanto ao “extraordinário feito atlético”. Bem é claro que eu nunca hei-de fazer um 9a, quanto mais 2 de seguida, no entremeio de uma mão cheias de 8c, etc. Eu não, mas. Mas este caso da Dawn Wall é como o busca do Ondra pelo 9a à vista. Ninguém tinha dúvidas que seriam conseguidos ambos os objectivos. Porque a escalada do sec. XXI com as condições e métodos de treino, com o equipamento e tecnologia disponíveis produz atletas capazes de alcançar isto e claro muito mais. No caso do Ondra ainda confirma mais o que pretendo dizer. O nono à vista até foi alcançado por outro elemento (Megos) antes dele. Enfim não são feitos banais, nem ordinários, nem estes atletas são heróis pelo que alcançaram, são tipos bons a fazer bem o que sabem fazer melhor e resta que nos sirvam como exemplo para não desistirmos dos nossos projetos e vias.
Enfim como disse dava pano para mangas, mas fico-me agora por aqui.
Obrigado a todos. Rosado, obrigado por perderes algum tempo a escrever aqui as tuas reflexões, são sempre muito bem vindas, pois é, ou era, suposto este espaço de comentários servir para expandir o debate e explorar novos ângulos de temas que como este dão mesmo pano para mangas…
A analogia Batman&Robin/Tommy&Kevin é no mínimo engraçada, até porque um assume-se com o underdog e o outro será o mestre.
A questão do herói, e de a necessidade de a sociedade produzir e ter heróis acho que é transversal à humanidade. Se o Tommy é um herói americano, que personifica o “american dream” como muito bem sublinhaste, então quero ser americano, porque ser português é ter como herói o Ronaldo, como está expresso nas fotos do último post, não é que Ronaldo não mereça ser um herói e seja ele próprio um exemplo do “american dream”… falo aqui em termos genéricos, do que serão heróis públicos.
Ainda bem que trazes a Silvia Vidal contigo, é de facto um exemplo extremo de uma coisa completamente diferente da Dwan Wall, o que ela faz é completamente anacrónico, até a sua forma de progressão vertical principal que é a escalada artificial é uma forma de escalada anacrónica, há quem diga que esta escalada marca a morte da escalada artificial em Big-wall, algo que sou forçado a concordar.
A questão da expectativa de que conseguiriam encadear de certeza, é muito interessante. Acho que é mais uma percepção externa, de nós terceiros, do que deles próprios. E eles não terão culpa. A avalanche diária de vias encadeadas mundialmente e de grosso calibre, uma coisa, hoje em dia, perceptível devido à tecnologia, cria uma sensação, falsa a meu ver, de que tudo é possível, ou uma questão de tempo. É o que acontece quando se resume a escalada a um numero e a uma perfomance, é criado um “calo” em que já nada impressiona e onde tudo é expectável, uma chuva de números que cria uma lama matemática e previsível para todos chafurdarmos. Não acho justo, para eles, a expectativa de que seria certo conseguirem, mas lá está eles expuseram-se de um maneira e escalam de uma maneira, que como já disse “são bons de mais” e fazem a coisa parecer fácil.
Excelente debate! No entanto, tenho a discordar com aqueles que que referem “que esta escalada marca a morte da escalada artificial em Big-wall”. É certo que os dois protagonistas lutaram, acreditaram num sonho que até uns tempinhos atrás parecia irreal…e conseguiram carimbar a sua presença em muitos manuais de história de escalada (e não só). Mas, atrás deste longo projeto (também já foi referido) houve “alguém” que foi o visionário, o motor do sonho destes dois escaladores, alguém que usou um estilo de escalada (artificial) necessário para a primeira ascensão na Dawn Wall. Relegar a escalada artificial para um segundo plano até posso achar normal face à pressão do mediatismo e da expressão da escalada em livre, agora considerar a sua “morte” acho no mínimo, redutor. A escalada artificial é um estilo para uns, um recurso para outros, mas quando toca a primeiras ascensões de grandes paredes em ambientes inóspitos onde existe muito compromisso, a escalada artificial assume-se como algo tão natural como escalar em livre. Arrisco-me a dizer tudo (estilos, formas, métodos) é Escalada!
Acho que a morte da escalada artificial, é como estilo de referência ou estilo preponderante, claro que será sempre usado principalmente em primeiras ascensões, mas talvez sempre como recurso já não como estilo principal ( em vias que sejam de referência), mas claro que um dos principais atributos, se não o principal, da escalada é a liberdade. E a liberdade de alguém querer fazer uma primeira ascensão em artificial nunca deverá ser cerceada. E isto apesar de tudo, e como muito bem referes, ainda não é a escalada total, que é uma coisa deste estilo, com esta dificuldade e magnitude como primeira ascensão…
Já foste Bruno. A BD e Petzl já vieram dizer que vão deixar de produzir Daisy Chains. Acabou-se a teta. A partir de agora deixas de poder meter o pé na argola, para apenas poderes entalar os dedos na fissura. E os novos Camalots serão vendidos com um dispositivo de (in)segurança anti-A0. As únicas unhas que estás autorizado a usar doravante são as das mãos e, no máximo dos máximos, as dos pés. É que isso do artificial faz-me lembrar aqueles malandros que nos jogos da bola no secundário ficavam à frente “na mama”, à espera para serem os primeiros a marcar golo. Há que vergar a mola como o duo maravilha.
NR – Obviamente estou a aparvalhar isto tudo e nada do que digo deve ser minimamente levado em conta, se é que alguém o pensaria fazer de antemão.
Já agora o meu ponto de vista.
Mas alguém me explica em que é que este feito pode ser inspirador para alguém. A mim só me faz ter vontade de ficar em casa e ser fraquinho no sofá. Com que moral é que vou agora crocodilar para um 7b de bloco, de reglettes de meia falange, a 4m do chão… Eu ainda tenho um pingo de vergonha na cara! Depois disto, o Marco Cunha só se pode queixar outra vez de alguma coisa se passar 20 dias pendurado nas Buracas, sem pôr o pé no chão, a limpar as vias da esquerda para a direita e a levar com o Magno como segurador, a roubar-lhe a comida toda do portledge.
Acabou-se o discursinho do está calor… Está calor? Escala todos os dias à noite. E se estiver a nevar, vai lá no ano a seguir e não te queixes.
Se eu fosse o Ondra metia a viola no saco e nunca mais ia a um 9b… Sim, porque agora um 9b de 40m à beira disto é coisa para meninos de autocaravana aquecida e com santa química (os únicos que talvez se safem nessa categoria são a Jumbo Love, lá no meio dos quintos do deserto, ou a Es Pontas lá no meio do talude continental; mas esses são como os blocos duros do Júlio, ninguém lá vai, ou se vai não volta).
Com este feito, a célebre frase do Sharma “Mucho tiempo!…” é simplesmente ridicularizada. Até nisso nos lixaram vida, pois a piadinha de citá-lo quando se encadeia o projecto deixa de fazer sentido. Mas alguém julga que me vou dar ao trabalho de andar 7 anos no mesmo problema. Nunca mais me posso gabar de ser perseverante, se não aguentar pelo menos esse tempo. Que eu conheça só há um tolinho no mundo mais casmurro que eles, mas a linha dele é na Freita.
É que nem sequer a minha recente desculpa do “Ah, e tal, dormi mal por causa dos meus 2 putos…” continua a colar. Um deles também tem de dar de comer ao filho e mudar fraldas…
É que deram completamente cabo da escalada para mim. Então não é que dou por mim colado ao monitor, às 11h da noite, a ver os largos finais da Dawn Wall. Quer-se dizer, eu que ia escalar aos fins-de-semana de jogos do Porto fora de casa, para fugir à doença de ir ver a bola na TV (já basta o estádio), agora dou por mim a ver escalada como se fosse uma partida de futebol. E a trocar mensagens com o Sérgio Martins, como se estivesse a ver um Porto x Benfica e do outro lado do telemóvel estivesse o Nuno Santos a picar-me. Só faltavam os comentários do Gabriel Alves a descrever a ascensão: “Dawn Wall uma via larga, dura… arejada.” ,“Kevin Jorgeson, 29 anos, 1,74m, 63kg, envergadura de 1,76m… baixo centro de gravidade”, “Aí vai Chris Sharma no seu estilo inconfundível… afinal é Tommy Caldwell”, “Que é que é isso, Tommy Caldwell finta o Dyno Pitch e faz um destrepe brutal, arrumando com o seu adversário directo.”.
Assim não meus amigos, estes gajos desinspiram uma pessoa. Acho que me vou dedicar à pesca submarina com o Sérgio ou pesca do Robalo à linha com o Nuno e Miro. Isto da escalada acabou para mim na 4ª à noite. Estragaram tudo.
Muito bom!!! Inspirador 😉
EhEh, muito bom Pedro.
Curiosamente, muito curiosamente, há quem diga que isto é o fim da escalada mesmo. Mas essa é outra conversa.Vamos à pesca que é mais certo…
hehehe muito bom…
Embora seja uma escalada inspiradora, esta visão é ainda muito mais inspiradora, mas agora vivo recolhido num eremitério, nas frias “paredes” do norte, em regime de clausura a penitenciar pelas lágrimas de crocodilo derramadas.
Qt ao projecto Buracas Sem Sistema é algo a reconsiderar se esta terapia não tiver efeito.
Ps: pode-se também sempre ir apanhar cogumelos; e já agora impressionante a forma como o Tommy agarra as regletes em trivela!
E aquela entrada de carrinho no Dyno… Disso ninguém fala MC. É que o Kevin entra com tudo à maluco e nem sequer um amarelo leva! Já para não dizer que o lance acaba em encadeamento do largo. Depois disso o desafio ficou sentenciado. Mas é a comunicação social que temos… facciosa.
Dizem que os comentadores apenas referiram que este tinha um tempo de lançamento superior a um metro. Não vi foi referências à prestação do material utilizado e números utilizados. Apenas sabemos que fizeram várias vezes recurso do número da “Telepizza”.
A NBabugem vai lançar um jogo de tabuleiro, o Dawn Wall monopoly. Só temos que lançar os dados… sai o número 3, encadeia o primeiro largo e segundo largo, passa para a “Reunião da Comunidade”… tira a respectiva carta… “acaba de ganhar um patrocínio da BD”; quando chegar à tua vez voltas a jogar, e avanças mais uns quantos largos… e chega a altura em que vais parar à casa da “Sorte”, a carta diz, “vais directamente para o Hamac, e passar a noite com o King, isso significa que vais ficar fora de cena pelo menos 10 jogadas. Se te sair esta carta sempre podes fazer uso da carta que indica que ganhaste um paraquedas e voltar à casa de partida, mas podes ir ter também à casa da “Companhia de Rangers” e ir directamente para a prisão. Muitas são as cartas que te podem sair, a pior é sempre a carta que diz: “Vai directamente para casa e volta mais forte no próximo ano” 😉
MC, pensa em grande ã americana, então o Dawn wall Monopoly sai só em versão tabuleiro, então e a APP para Android e IPhone?
Pedro Rodrigues: Clap! Clap! Clap! (aplaudo de pé) Muito bom texto. Muito bom.
Sérgio só a achega sobre a expectativa, foi muito curioso a pussy cat fight sobre a Orbayu. As meninas estavam a dar como garantida a FFA da primeira que lá fosse. É engraçado, parece que já há limites.
RR
Gostei bastante do texto e análise acerca desta escalada mediática e também do debate que se segue aqui neste espaço de comentários. Parabéns ao Sérgio Martins pela iniciativa.
Se não se importam gostaria de deixar também uma opinião.
É certo que a escalada em livre da Dawnwall constitui um marco no panorama mundial mas, tal como o Bruno Gaspar, não posso concordar com a afirmação de que a escalada artificial de BigWall tem os dias contados ou que apenas existe como “um recurso e nunca como estilo principal”, como se todas as vias de artificial tivessem como único objectivo existencial a sua posterior realização em livre. Esta minha opinião, nem sequer é apenas minha, nem nova! São vários os escaladores (de alto nível) que abrem vias em artificial extremo nos vários cantos deste planeta, em especial nas grandes cordilheiras e paredes. Um grande expoente, já aqui referido, é a Silvia Vidal, que com o seu metro meio e grau assumido de “apenas” 7a, vai realizando grandes aventuras com um nível de compromisso estratosférico – compromisso de resto incomparavelmente maior que o assumido agora pelo Caldwell. E eis que surgem as vozes: “Ah, mas não tem nada a ver!” E aí está! Realmente as coisas não são iguais. Cada actividade possui o seu caracter próprio. Por isso penso que colocar a Escalada Artificial (sobretudo de BigWall), num plano meramente intermediário é o mesmo que dizer que o Boulder é apenas um treino para escalar vias maiores, ou que a própria escalada desportiva é apenas um treino para as grandes vias de montanha e Alpinismo.
A escalada Artificial é, por mérito próprio uma disciplina mais, desta nossa panóplia colorida do mundo vertical, com um caracter particular que a distingue das outras disciplinas. Como é evidente, isto não quer dizer que estas vias não possam ser realizadas em livre algum dia mas, tratar-se-á sempre de uma repetição porque, efectivamente a primeira ascensão, completa, já foi realizada. O facto de possuir largos graduados com a escala de artificial não significa que determinada via esteja incompleta.
A realização da DawnWall em livre é um grande marco e um feito notável e trata-se quiçá do expoente máximo de determinado estilo que privilegia o assédio e repetição até à “exaustão”, até conseguir, através da memória e performance física, realizar todos os movimentos em livre. O que a distingue das outras escaladas em livre de alto nível é o facto de esta ter sido realizada em ambiente de BigWall e o número de lances duros que a caracteriza. Mas, ao nível do compromisso não se pode comparar à vizinha “ReticentWall”, por exemplo. Ou a outras vias de artificial espalhadas pelo mundo. Não é comparável. O “estilo” artificial privilegia a aventura, o desafio mental, o compromisso e a exposição e privilegia também, o que para muitos é uma peculiaridade incompreensível, que é a capacidade técnica e tecnológica para ultrapassar determinada parede, tentando minimizar ao máximo o recurso aos expansivos.
A Escalada artificial pode ter defensores e detractores mas, o mesmo se passa com a Desportiva, a chamada “Clássica”, o Boulder ou o Alpinismo.
Para mim, cada uma das disciplinas que constituem esta mixórdia de actividades – cujo ponto em comum consiste em desafiar a lei da gravidade – constituem em si uma entidade particular perfeitamente definida, merecedoras do devido respeito.
Mais uma vez parabéns pelo texto e possibilidade de debate.
Obrigado Paulo pela brilhante defesa do “artifo”, e, já agora, as rápidas melhoras pois disseram-me que estás a recuperar de um acidente, melhores dias virão de certeza.
A questão é complicada e é complicado escrever na net sem ferir susceptibilidades. Acaba por ser uma questão ética e de estilo, é claro que o artificial tem o seu lugar e a sua utilidade e legitimidade, agora a questão é se vai ser ou não ser ultrapassado pelo autocarro da história, que anda bem rápido nos nossos dias e acaba de dar um valente salto para a frente.
Quando uma via de Big wall nasce, vem ao mundo conforme os seus autores a conceberam e conseguiram fazer conforme as suas habilidades. Imaginemos que é maioritariamente de artificial na sua génese, como era o caso da dwan wall, pode morrer assim ou alguém conceber uma melhoria ética, ou seja de estilo, e aqui é preciso conceder que escalar em livre é mais difícil pois depende apenas de capacidades humanas digamos, tal como escalar em solo integral, é uma melhoria ética da escalada com corda o que não quer dizer que o objectivo de uma via é ser feita em solo integral, nem sempre acontece ou muito raramente, mas é sem dúvida o mais puro dos estilos.
Éticamente, também, é preciso que a via não seja muito, ou nada, alterada pelos repetidores quer em livre quer em artificial, o que nem sempre acontece especialmente no El Cap, ninguém sabe ao certo quantos bolts foram acrescentados, quer para a escalada livre ou se calhar mesmo para as filmagens (pura especulação aqui) são coisas que ficam no segredo dos deuses. É raro a escalada livre seguir à risca o traçado original, e esta via não é excepção com variantes novas e largos novos, no final criaram também uma coisa nova chamada Free dwan Wall em cima de uma coisa velha, que assim de certa forma deixa de ter razão de ser, e é nesse aspecto que se pode falar em morte do artificial.
Oias.
Não estão feridas quaisquer susceptibilidades. Já nem tenho idade para isso.
Creio que é fixe existirem estas trocas de opinião. Assim ficam-se a conhecer diferentes perspectivas.
Compreendo o teu ponto de vista e concordo (em definitivo) que a escalada livre será talvez a forma mais elegante de se escalar uma parede, ganhando dimensão especial quando realizada nas grandes paredes do planeta. Apenas creio que a Dawn Wall não deixará de ser considerada uma via mista de artifo e livre devido a esta (incrivel) realização em livre. Assim como a Nose não deixou de ser uma via de Bigwall, apesar dos contínuos records de velocidade. A imensa maioria de escaladores continua e continuará a escalar estas linhas em técnica de artificial (ou combinando livre com o artifo, dependendo do nível de cada um) e em vários dias. Não creio que o mundo da escalada e a forma de abordar as paredes mude muito, com esta escalada do Caldwell.
Como é evidente, estas performances fora de série inspiram, mexem com a imaginação e despertam paixões. E penso que esse será o grande contributo para manter viva a chama e o entusiasmo, independentemente do “estilo” de escalada.
Abraço (desde o estaleiro)
Eia… Cheguei tarde, já vão na sobremesa artificial da conversa! Bom, agora tenho de comer o prato principal já frio…
Ora, apenas vou comentar duas coisas à pressa. Primeiro, que o feito do Dawn wall é mesmo fora de série, groundbreaking feat e é história a fazer-se e blabla. Mas o bigbrother que fizeram disso é para mim lamentável e nada inspirador. Talvez tenha resultados positivos e inspiradores para a massa escalatória mundial (psyched movies e crachás a dizer TC/KJ), mas eu odeio massa e prefiro arroz. Creio que o circo montado ultrapassou os palhaços, quero dizer, não sei se o TC e o KJ fizeram bem as contas. Se fizeram, é porque mediram e queriam mesmo aparecer na capa do NYT e estavam dispostos a pagar o preço. Que preço? Simples, a falta de liberdade e a recompensa de não se ser observado quando se faz qualquer coisa que realmente importa para o coração. Mas talvez eles tenham usado a cabeça mesmo…
Segundo ponto, sobre isto: ” Se o Tommy é um herói americano, que personifica o “american dream” como muito bem sublinhaste, então quero ser americano, porque ser português é ter como herói o Ronaldo”. O cú não tem nada a ver com as calças. Há aqui duas análises. Uma ao nível do valor individual: o Ronaldo é o melhor do mundo (num momento) num desporto de milhões de praticantes e onde as pressões sobre os atletas são estratosféricas por comparação a qualquer pressãozinha que um escalador tenha de enfrentar para encadear um largo (bloco, via, até mesmo entre os 19 dias no Elcap). Não consegue? Rapela, desce, vai treinar, volta mais forte, tenta outra vez. Nos grandes desafios de futebol, cada momento é irrepetível. Representa uma vitória (e.g. mundial) que arrasta a alegria ou a neurose de milhões de pessoas e representa também milhões que se movem ou não de um lado para o outro. Isso pesa na cabeça do gajo que chuta a bola. Ora, as qualidades de atleta do Ronaldo estão a anos luz de qualquer escalador. Sem contar que para o país, ter um Ronaldo faz mais pela economia que os últimos 23 ministros da pasta ministerial. A segunda análise é do valor qualitativo do desporto. Preferir ser americano porque o português tem por herói o Ronaldo… Ser português é bem capaz de ser outra coisa… não é por sócrates (e o resto dos vermes que corroem o país) ser português que eu faço a trouxa e vou para a grande maçã viver o dream das minhocas gordas. Ver o país bajular, babar, idolatrar ad nauseam o Ronaldo, não tem nada a ver com a qualidade do país em si, nem com a qualidade do Ronaldo.
(Bem sei que este comentário vem da interpretação literal do que estava escrito mas não podia deixar seguir)
Abcs
Pois é, o comensal que chega tarde arrisca-se a servirem-lhe dobrada fria.
Mas como sabes dobrada (à moda do NorteBouldering) nunca se come fria, vamos lá requentar o prato.
Penso que o nó está no último paragrafo pois no segundo vai ao encontro do texto principal. O último tem ver com a imagem de Ronaldo a ser condecorado pelo PR e na outra o Obama a fazer um like numa aguarela yosemítica. A comparação entre Ronaldo e Tommy é abusiva de propósito, e obrigado por teres mordido o literário anzol, Ronaldo é um gigante à escala planetária e merece todas as vénias e estátuas que lhe façam na sua terra.
É preciso generalizar para criar a caricatura. Claro que não queria ser americano, mas gosto de um país onde ele apareça com herói, é muito simples, se entendermos que a necessidade de um herói é tão antiga como a humanidade ou é inerente ao humano, se me dessem a escolher entre o herói Ronaldo ou Tommy, ficava pelo americano, e não só pelo facto de ser escalador.
Tudo bem. A questão é que o Tommy não é “o” herói americano. Está até muito abaixo do que representa por ex. o João Garcia em Portugal. O herói americano, para além do super-homem e do capitão américa, deve ser um gajo que joga basket ou baseball e vive em Manhattan…