Escalada 2084. XXIV Libéria.

Escalada 2084 XXIV Libéria.

No capítulo anterior: Um multi-evento musical caótico no Estádio do Bessa Séc. XXII. Um fado premonitório de Amália, interpretado pela primeira vez por LG. Um destino traçado num beijo infinito.

 

O cargueiro, um trampship, cortava as águas do Atlântico com vigor, com destino à costa ocidental africana. Entardecia. A nortada omnipresente fazia os pássaros dançarem por cima de nós. Uma dança feliz, esquecida dos vivos e dos mortos. O vento era o seu destino. Nunca voavam contra ele.

Debruçado sobre a balaustrada, contemplava as ondas que se formavam contra o casco, imerso num mar profundo de negros pensamentos. Levantei a cabeça e ao longe via-se a falésia da ponta de Sagres, um último sinal de Portugal, prestes a desvanecer-se.

“Em tempo escalou-se muito ali”, disse casualmente virando-me para o lado.

“Escalou-se? …”

“Sim, era um local de referência até o proibirem por ser um monumento nacional.”

“Claro…a escola dos navegantes de Sagres…uma bela história para entreter…” Riu-se o meu circunspecto interlocutor, que estava com dificuldades em manter a sua longa barba direita devido ao vento.

“Li, conta-me outra vez a história da Libéria…”, pedi desviando o olhar de Sagres e virando-me para Sul em direcção ao futuro.

“É um caso exemplar da natureza humana…um caso exemplar…”, fez uma pausa, parecia estar a ponderar cuidadosamente as palavras, ou talvez tivesse apenas esquecido onde tinha o tabaco, “No século XIX, com o advento do fim da escravatura nos Estados Unidos da América, muitos acreditavam ser impossível integrar na “sociedade das pessoas livres” os escravos libertos, acreditavam, então, serem mentalmente e fisicamente inferiores. Procuram uma solução para essas pessoas, que passou por criar uma sociedade com a missão de comprar uma parcela de terra em África. “ Voltou-se para trás, para se proteger do vento, enquanto acendia um cigarro.

“Foi assim que nasceu a colónia estabelecida por Afro-Americanos no que hoje é a Libéria…escravos negros libertados…”, disse eu protegendo-me do vento também para acender um cigarro.

“Negros…mas um pouco mais claros…como faziam questão de frisar”, escarneceu Li, num esgar a caminho do sorriso, que lhe fazia sobressair os dentes de ouro.”Os novos colonos, quando foram atirados para África, já estavam “aculturados” aos hábitos e religião ocidentais e, naturalmente, criaram no novo território uma réplica da sociedade em que estavam habituados a viver, falavam inglês, construíram escolas e igrejas protestantes. Embora fossem uma minoria, rapidamente se estabeleceram como uma elite privilegiada, recriando assim o sistema de segregação racial em que viviam anteriormente, só que… colocando-se, desta vez, a eles próprios no topo…”

“Que história demente, dá vontade de me atirar imediatamente pela borda fora, não há mesmo esperança…”

“Não é tudo…”, riu-se mais uma vez Li, “…Há quem diga que a esperança acabou no dia em fomos expulsos do paraíso…”, atirou o cigarro borda fora e continuou: “Bom…esses homens ainda tinham uma réstia de boas intenções e acreditavam que era possível civilizar os nativos…só que para sua grande surpresa estes não queriam ser civilizados…”

“De boas intenções está o inferno cheio…”

“Já falámos sobre isso…” e puxou de mais um cigarro, “Esta triste história acaba com o governo da Libéria a ser acusado de vender parte da sua população para a escravatura.”

“É triste, de facto, e exemplar…”, o mar batia agora com mais força no casco, como se as palavras pesadas lhe revoltassem o estômago. “Foi por isso que estabeleceram lá o território livre de que falas?”

“Foi um conjunto de coincidências, há uma vintena de anos um conjunto de anarquistas pacifistas procuraram um novo território, para um novo começo, longe de tudo e de todos, longe das garras capitalistas e marxistas, viraram-se para África, e a Libéria possuía extensas parcelas desabitadas, a população foi sendo dizimada por anos e anos de guerras civis, e estavam desejosos de receber novas pessoas…a troco de um rendimento, já se sabe. Os anarquistas acharam que a história desse triste país seria uma herança exemplar, uma memória física e viva sempre presente para que não se repetissem os mesmo erros nunca mais. Nasceram assim os Territórios Livres da Libéria, um território anarquista, sem moeda e sem governo, uma nova e secreta esperança para a humanidade…”

“Já tinha ouvido falar desse sítio, mas pensei que fosse um mito, uma espécie de ElDorado…”

“Sim…mas o ouro que lá existe chama-se liberdade…”, virou-se para mim, afagando a longa barba e os olhos cintilaram quando disse: “Não é fácil dar com esse território, primeiro tens de o encontrar dentro de ti…”

Um longo silêncio abateu-se entre nós, só quebrado pelo barulho das ondas, o barco avançava para sul, o tempo também. O meu tempo. Da minha própria história. Pela primeira vez sentia que lhe agarrava as rédeas. “Porque me ajudaste?”

“Não ajudei. Tu próprio lançaste os dados. Eu fechei os olhos e apenas abri uma porta, esta porta para sul. Como já falamos uma vez, pelo facto de se mostrar um caminho, não quer dizer que alguém o queira percorrer…tu colocaste-te no caminho certo e eu apenas fiz com que a imagem do destino ficasse um pouco mais nítida.”

“Isso é bonito, mas não responde à minha pergunta…”

Suspirou profundamente, era primeira vez que o via fazer tal coisa. “Estou cansado Sebastião, muito cansado, não queria partir deste mundo, sem uma réstia de esperança, contribuí demasiado para a sua destruição e o verdadeiro Marxismos das Brigadas é mais do mesmo, a história a repetir-se em ciclos, vezes sem conta, um ciclo de morte.”

Continuou: “Eu não preciso de um novo começo, mas preciso de dar origem a um. Enfim, preciso de um fim, escrito por mim, que seja um começo novo para outra pessoa. Uma redenção final que me faça sorrir, nem que seja por um segundo, neste inferno que ajudei a criar. Sou um homem perdido…há muito…mas para ti talvez haja alguma esperança…”

Um gemido atrás de nós interrompeu a conversa.

“Acordou”, disse virando-me para trás.

“Sim, já era tempo”, disse Li, “Vou para baixo descansar”, e eclipsou-se por uma porta ao fundo.

Aproximei-me da chaise long de deck, onde um vulto estava deitado embrulhado em mantas. Sentei-me à cabeceira. O rosto contorcia-se em esgares e gemidos, até que abriu os olhos. Uns profundos e brilhantes olhos negros.

“Sebastião?”

Afaguei-lhe a testa afastando-lhe os longos cabelos da cara, “Sim…”

“Onde…estou…”, pronunciou a custo.

“É uma longa história…”

FIM

 

 

Não posso deixar de agradecer especialmente a duas pessoas que acompanharam e trabalharam nesta longa saga desde o inicio. Ao Pedro Rodrigues pela paciência, incentivo e revisão dos textos e ao Vítor Baptista por ter abraçado esta ideia com entusiasmo, emprestando, com as suas ilustrações, uma visão diferente, particular e surpreendente a esta história.

Escalada 2084. XXIII Morrer Devagar.

Escalada 2084. XXII Jogo de Cinzas.

Escalada 2084. XXI Bessa séc. XXII.

Escalada 2084. XX Memento Mori.

Escalada 2084. XIX Sangue Suor e Lágrimas.

Escalada 2084. XVIII Ossos do Ofício.

Escalada 2084. XVII Ben&Jerry.

Escalada 2084. XVI Cavalo de Ferro.

Escalada 2084. XV Revelations.

Escalada 2084. XIV Álbion.

Escalada 2084. XIII Estranhas Entranhas.

Escalada 2084. XII Outubro Vermelho.

Escalada 2084. XI Aristides.

Escalada 2084. X Aves Raras.

Escalada 2084. IX Eterno Repouso.

Escalada 2084. VIII Banho de Sangue.

Escalada 2084. VII Erros Meus.

Escalada 2084. VI ShitHappens.

Escalada 2084. V O Império do Eu.

Escalada 2084. IV Rosebud.

Escalada 2084. III LePlaisir.

Escalada 2084. II A Sombra de M. Giant.

Escalada 2084. I Chipados.

NBFolhetim. Escalada 2084. Um Drama Futurista. Introdução

8 Responses to Escalada 2084. XXIV Libéria.

  1. José Abreu diz:

    Parabéns pela história, apaixonante até ao final.

    As sextas-feira nunca mais serão as mesmas!!!

  2. VBaptista diz:

    Deixo aqui o meu MUITO obrigado ao Sérgio Martins por nos DAR esta ENORME lufada de ar fresco. Bem ajas Sérgio…

  3. VBaptista diz:

    Hajas!!!!

  4. nortebouldering diz:

    Obrigadoo Zé. Baptista, mais uma vez, eu é que agradeço.

  5. Pedro Rodrigues diz:

    Recordo-me de há uns meses discutirmos se algo neste formato teria cabimento no projecto NB. As (poucos) opiniões recolhidas variaram, mas acho que ficou bem provado que fez todo o sentido. Algo que ao início poderia parecer estapafúrdio, revelou-se afinal mais uma pedrada no charco. É certo que não é um formato fácil, mas normalmente essa é a chave para se primar pela diferença. Não recolheu as palmadinhas nas costas que muitos necessitam para levar os seus projectos avante, mas a isso já vem sendo hábito e não é essa a força motriz. Gerou antes reacções e muitos de nós seguimos o desenrolar da novela com muita curiosidade. Resultou em pleno, porque se aprendeu muito no processo. Resultou em pleno, porque houve diversão no processo. Resultou em pleno, porque houve criatividade envolvida no processo. Resultou em pleno, porque houve pesquisa no processo. Resultou em pleno, porque houve troca de ideias no processo. Resultou em pleno, porque a escalada serviu de mote para algo diferente. Resultou em pleno, porque qualquer escalador se pode identificar de alguma forma com a história (toca na santa trindade do bloco, desportiva e clássica). Resultou, porque nos leva a reflectir acerca do “mundinho” da escalada, porque nos põe as coisas sobre perspectiva, porque nos leva a rir de nós próprios, porque nos força a repensar a nossa noção de sociedade de uma forma apartidária, porque aumenta a nossa cultura geral. E para mim isto são factos, quer se queira, quer não. Espero sinceramente que este não seja o fim da história e que de alguma forma ela possa dar o salto que merece. Quem disse que tem que acabar por aqui?

    Parabéns também ao Vítor Baptista pela dedicação que empregou durante 24 semanas, pois as suas ideias foram sem dúvida uma mais valia. Parabéns a ti pela paciência e coragem de levar a cabo um processo longo, que requereu um empenho ao longo de mais de 4 meses, a troco apenas da satisfação pessoal e do dar algo de novo à comunidade de escaladores.

    PR

    • nortebouldering diz:

      Resultou mesmo, Pedro, obrigado mais uma vez, foi uma aventura diferente, e nada como bons Compagnons de Route para trilhar caminhos espinhosos e tortuosos.

  6. sesa diz:

    Acompanhei com entusiasmo e já esperava ansioso pelo novo capítulo… Li este “FIM” com tristeza. Agradeço estas “Sextas” a toda a equipa, em especial ao escritor e ao ilustrador, um nível Excelente em tudo. Espero que de alguma forma possa continuar (ou que algo ocupe este espaço…).

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