No capítulo anterior: Sebastião agoniza no Red October. Por fim chega o pombo com o objectivo do atentado. Ao ler a mensagem o chão desaparece sob os seus pés. Não haveria recuo, os dados estavam lançados…
Cheguei mais uma vez atrasado, mas mais do que a tempo para o que vinha ali fazer. O multi-evento já havia começado. O cartaz era extensíssimo, desde a música neo-pimba ao fado, passando por uma orquestra clássica com mais de 200 elementos, que interpretaria obras populares de Prokófiev. A orquestra, que na realidade era um super-computador musical, na boca dos melómanos era uma experiência melhor que o original, uma experiência “exacta” e sem as abjectas falhas humanas, diziam. Era um espectáculo bizarro, mas muito do agrado de um público sempre ávido de novas tecnologias de “deixar a boca aberta”, um monólito gigante erguia-se no palco, límpido e aparentemente sólido e inerte, um maestro, convenientemente desgrenhado, entrava e, ao primeiro sinal da sua extravagante mímica, o monólito começava a brilhar e a piscar, com múltiplas luzinhas a acenderem-se ao som dos acordes musicais.
A seguir foi servido um cantor romântico, para gáudio do público feminino de meia-idade. Com letras recicladas um milhão de vezes o, bem penteado, sujeito fazia o seu papel amolecendo empedernidos corações com um bálsamo que falava de amores perdidos, ilusões reencontradas e ocasos a dois em praias de areia branquíssima.
Um grande enxame de pequenas crianças canoras serviu de interlúdio a um dos pratos principais da noite, a banda de punck-new-age, Caos Iluminado, que para desespero de inúmeros fãs, vestidos a preceito, só tocaria uma única música, o seu mega êxito, Enlightened Rats. Também aqui não havia instrumentos em palco, apenas os elementos da banda em desenfreadas coreografias, uma espécie de ópera ultra-moderna, em que os músicos também eram actores. O seu líder, uma espécie de cruzamento auspicioso de Sid Vicious com um monge budista, estava especialmente enérgico nessa noite interpretando os diversos papéis que a música sugeria. Uma música que ia, com uma facilidade espantosa, de cantos de baleias a riffs de guitarras estridentes, levando-o da posição de lótus a enérgicos golpes de Karaté, em questão de segundos.
Algures no meio desta algazarra actuaria LG. Tinha prometido assistir ao concerto, muito antes da fatídica notícia e estava combinado que passaria nos camarins a seguir à actuação. Pelas mensagens trocadas ela já sabia da minha presença no estádio. Aproveitando-me da enorme confusão na zona dos camarins, disse-lhe que não podia correr o risco de ser reconhecido, ela estava a par da minha condição de fugitivo, e por isso seria impossível lá passar. Insistiu. Pedi-lhe, então, para ir ter comigo sozinha à zona debaixo da bancada, uma hora a seguir à sua actuação. De imediato respondeu que sim, que iria, embora não soubesse ainda como despistaria a segurança…
Mais ou menos à hora da actuação de LG fui para o relvado. O bisneto do Quim Barreiros, conhecido como Kim Três, estava em palco a acabar a interpretação do seu último êxito, Cama Truta, aparentemente levara um certo livro de presente a uma vizinha que o convidara a comer truta…Um intervalo e chegaria LG, para a grande apoteose da noite. Finalmente.
Entraram os guitarristas e pouco depois apareceu em palco uma esfíngica figura de preto, como sempre. O tema que cantaria nessa noite era desconhecido. Caiu um estranho silêncio, interrompendo, por segundos, a respiração próprio estádio. O som metálico das guitarras quebrou o encantamento, arrancando, para surpresa de muitos, os primeiros acordes de Meu amor, meu amor, mais um fado de Amália, que era uma estreia absoluta no repertório de LG. As palavras caem-me do céu como a chuva límpida da nuvem negra de que falara Li, “…nós parámos o tempo não sabemos morrer/e nascemos nascemos/do nosso entristecer….” Era uma canção ou uma premonição, estava siderado, “…este mar não tem cura este céu não tem ar/nós parámos o vento não sabemos nadar/e morremos morremos/devagar devagar.” As lágrimas corriam-me em abundância pela cara abaixo, era eu próprio um triste espectáculo, o empedernido assassino em lágrimas perante a sua vítima… Mas a catarse era colectiva e as minhas lágrimas eram apenas um grão de sal no mar que brotava do público, cada um chorava a sua tragédia, lavando com as lágrimas o manto da vontade de viver. Mas para mim o céu não tinha ar de facto. Sentia-me prestes a sufocar.
Uma sombra aproximava-se. Uma figura esguia, envolta numa capa com um grande capuz de monge, aproximou-se de mim. Estava encostado a um pilar, numa das zonas mais sombrias por baixo da bancada. Era ela, não havia a mínima dúvida, o coração disparou a cem à hora. Aproximou-se, de cabeça baixa para não ser reconhecida, estendeu-me as duas mãos e ouviu-se um sussurrado: “finalmente…”, levantou a cabeça e os olhos faiscantes encandearam-me momentaneamente, “estás diferente…mais humano com essa barba e cabelo”, olhou-me com mais atenção, “mas és tu sem dúvida…finalmente posso juntar um rosto e uma presença às tuas palavras…palavras que me têm salvo a vida…”
Não conseguia dizer nada. “L…”, articulei a custo, “finalmente…” Recuperei o sangue frio e disse-lhe: “vamos para ali para o parque de estacionamento, para estarmos mais à vontade.” Abri a porta discretamente e passámos para o outro lado, para um deserto e soturno parque de estacionamento. Levei-a pela mão, em direcção à carrinha, estrategicamente estacionada num local discreto e escuro.
“Com que então salvei-te a vida….não estou a ver como…”
Olhou-me a direito e os olhos brilharam intensamente: “ falar contigo, as tuas cartas e mensagens, são a única coisa real na minha vida, os únicos momentos em que não tenho de fingir, ser uma sósia de Amália ou uma viúva chorosa, ou outra coisa qualquer que me colam continuamente na cara.”
“Também tu… foste a única luz, na escuridão em que vivi nestes últimos meses”, disse num fio de voz quase inaudível.
Baixei-lhe o capuz e, vítimas de um magnetismo incontrolável, os nossos rostos aproximaram-se para se fundiram num beijo infinito. O abraço prolongou-se desmesuradamente no tempo. Tempo que parara. Parara para alguém morrer. Devagar.
Sem hesitar apliquei-lhe a injecção, que dissimuladamente estava na minha mão. O corpo de LG desfaleceu nos meus braços.
Na próxima semana será publicada a vigésima quarta, e última, parte: Libéria. Obrigado. SM
Ilustração Vitor Baptista
Escalada 2084. XXII Jogo de Cinzas.
Escalada 2084. XXI Bessa séc. XXII.
Escalada 2084. XX Memento Mori.
Escalada 2084. XIX Sangue Suor e Lágrimas.
Escalada 2084. XVIII Ossos do Ofício.
Escalada 2084. XVII Ben&Jerry.
Escalada 2084. XVI Cavalo de Ferro.
Escalada 2084. XV Revelations.
Escalada 2084. XIII Estranhas Entranhas.
Escalada 2084. XII Outubro Vermelho.
Escalada 2084. IX Eterno Repouso.
Escalada 2084. VIII Banho de Sangue.
Escalada 2084. VII Erros Meus.
Escalada 2084. VI Shit Happens.
Escalada 2084. V O Império do Eu.
Escalada 2084. III Le Plaisir.
Sniff. O que virá?!