No capítulo anterior: Um Jogo de futebol no ultramoderno estádio do Bessa séc. XXII serve a Sebastião e a Li para reconhecerem o terreno do futuro atentado. Os pormenores são revistos à exaustão, mas o alvo permanece indefinido…
A semana eternizava-se. O lento passar das horas, na cave do RedOctober, acentuava as minhas dúvidas e incrementava um desespero crescente que aos poucos tomava conta de mim. Grãos de dúvidas e de incerteza iam cobrindo o meu caminho como uma areia espessa, apagando-me o passado, negando-me um futuro e mantendo-me prisioneiro num presente opressivo.
De noite não conseguia dormir. Acordava frequentemente com suores frios. O mesmo pesadelo atormentava-me de forma recorrente: o Chefe dava-me um punhal para as mãos e dizia a sorrir,”Agora prova do que és capaz”, eu olhava para aquilo sem perceber e ele dizia, “Mata-te, mata-te!”, e começava a rir sinistramente enquanto a sua cara se transformava na caveira de diamantes. Acordava banhado em suor, sentava-me e acendia um cigarro. No andar de cima, a acção continuava. Os velhos jogavam majong de dia e de noite. Mas o barulho das peças no soalho já não me embalava o sono. O jogo nunca parava. A vida também não. Era o momento de decidir ser peça ou jogador.
Como nas últimas noites levantava-me, saía da cave, passava pelos velhos e ia para o quintal das traseiras fumar cigarros, tentando perscrutar na noite uma solução. Queria avisar LG para cancelar o seu concerto, mas uma mensagem desse género poderia comprometer toda a operação. Mas não, não haveria perigo, não podia ser ela o alvo, dizia para mim mesmo repetidamente tentando tranquilizar-me.
Revíamos a operação vezes sem conta. A carinha, um veículo insuspeito, ficaria estacionada no parque por baixo da bancada do estádio. O alvo, esse, seria atraído à zona perto da porta de grades através de uma mensagem irresistível.
“Que fazes a seguir?”
“Entro em acção, imobilizo-o e aplico-lhe uma injecção na base do pescoço.”
“Exactamente….tal e qual como fazia o antigo Dexter na série de televisão”, riu Li, mostrando uma profusa cremalheira amarelecida pelo tabaco, na qual pontificavam dois dentes de ouro.
“Dexter? Não conheço.”
“Era uma série de televisão do início do século…uma boa série sobre um serial killer bem intencionado…imagina…, no fundo para ele, tal como para nós, os fins justificavam os meios.” O sorriso esmorecera e o rosto de Li voltara a adquirir um ar sombrio.
“De boas intenções está o inferno cheio…”, disse de mau humor.
“Tens razão…tens muita razão…é verdade que o Inferno não tem portões…enquanto a estrada para o Céu é bem conhecida e ninguém a quer percorrer…”
“Estou sem paciência para os teus enigmas…voltemos à terra…aplico-lhe a injecção e o tipo adormece ali na hora…”
“Sim…adormece para sempre…”
“Para sempre? Não vai ser um rapto?”
“Vai, vai….mas…sem resgate…”, disse sinistramente Li.
Sairíamos do estádio rapidamente e algures a meio da caminho trocaríamos de viatura, abandonando a primeira com um pequeno presente para os agentes da DRAS.
“Uma bomba?”
“Claro, algum fogo-de-artifício ajuda sempre à festa!”
Já na nova viatura chegaríamos ao Red, faríamos um vídeo-mensagem e a seguir livrar-nos-íamos do corpo.
“Como nos vamos livrar do corpo?”
“Não te preocupes, o Gong trata disso, já te referi que possui multi-talentos?”
Engoli em seco aterrado, “Já, já.”
“Mas…por essa altura já estaremos em Leixões para embarcar para Inglaterra. Agora vamos preparar tudo, que o pombo chegará em breve.”
Finalmente chegara a véspera do concerto. Tudo estava preparado. A viatura já estava no parque de estacionamento do estádio, convenientemente lá deixada pelo nosso infiltrado. Estávamos todos nas traseiras do Red, um daqueles esguios quintais típicos da baixa do Porto, à espera do pombo. Um velho relógio de ponteiros na cozinha martelava os segundos, pancada atrás de pancada. Uma mosca pousou na varanda de ferro, parecia estar a vê-la ao microscópio, esfregava as patas, fazendo aquilo que as moscas fazem normalmente na sua vida de moscas, indiferentes às ansiedades e ao tempo humano. Olhava-a com infinita atenção tentando abstrair-me da tensão da espera, mas o insecto continuava indiferente e não mostrava o mínimo sinal de compaixão para com os meus problemas.
A cinza dos cigarros não parava de cair, como uma neve suja ia cobrindo a laje de granito da varanda, por fim um som, um grunhido mais propriamente, fez-me estremecer como quem acorda de um sonho. O primeiro a ver o pombo foi o Gong.
“Aí está ele”, disse Li apagando o enésimo cigarro no chão.
O pombo aproximou-se graciosamente da varanda de ferro. Pousou, fazendo fugir a minha amiga mosca. Parecia o Aristides, mas não conseguia ter a certeza, para mim, tal como os chineses, os pombos eram todos iguais. Li apanhou-o com delicadeza, e retirou-lhe a mensagem da pata.
Abriu o papel e leu. Nem a mais leve expressão o traiu. Passou-me o bilhete. Apenas duas letras, o suficiente para sentir o chão a abrir-se aos meus pés: LG.
Estava feito, tudo preparado, o alvo definido. Não havia recuo, no entanto não consegui respirar, o papel escapou-me das mãos, ficara paralisado, via o papel a cair no chão com uma lentidão desmesurada. Uma mão apanhou-o, pegou-lhe fogo e acendeu um cigarro com ele. Era como se nunca tivesse existido, no entanto a sentença estava traçada.
“Agora percebo tudo, finalmente!”, explodi de raiva.
“Tudo tem um significado, todos temos um propósito na vida, o teu é executar esta missão, a escolha do alvo pode parecer-te cruel, mas não te esqueças que estás à prova ainda e esta é definitivamente uma prova difícil à altura dos melhores entre os melhores.”
“Vai-te foder! À altura das melhores marionetas, queres tu dizer!”
“Como quiseres…não te martirizes muito com isso…somos todas marionetes nas mãos do destino…”
Estava desesperado, comecei a esmurrar a parede cego de raiva. Até que fui imobilizado por um aperto poderoso. A um sinal de Li, Gong imobilizara-me.
“Calma, calma…ainda vais precisar dessas mãos…”
Gong largou-me e caí no chão como um boneco de trapos. Encostei-me à parede, recolhi os joelhos e cobri a cara com as mãos sangrentas.
“Não desesperes, levanta-te…” o circunspecto e frio chinês, falava-me num tom que nunca lhe tinha ouvido, estendeu-me a mão, “nunca te esqueças que das nuvens mais negras cai água límpida e fecunda.”
Aquelas palavras tiveram um estranho efeito sobre mim, levantei-me e fui para a cave, sem uma palavra, mais tarde, já de noite, voltei para o alpendre, passei ali a noite em claro. A luz da madrugada, fez-me abandonar o estado de torpor e sair, havia muito a fazer até à hora do concerto.
Na próxima semana será publicado a vigésima terceira parte. Obrigado. SM
Ilustração Vitor Baptista
Escalada 2084. XXI Bessa séc. XXII.
Escalada 2084. XX Memento Mori.
Escalada 2084. XIX Sangue Suor e Lágrimas.
Escalada 2084. XVIII Ossos do Ofício.
Escalada 2084. XVII Ben&Jerry.
Escalada 2084. XVI Cavalo de Ferro.
Escalada 2084. XV Revelations.
Escalada 2084. XIII Estranhas Entranhas.
Escalada 2084. XII Outubro Vermelho.
Escalada 2084. IX Eterno Repouso.
Escalada 2084. VIII Banho de Sangue.
Escalada 2084. VII Erros Meus.
Escalada 2084. VI Shit Happens.
Escalada 2084. V O Império do Eu.
Escalada 2084. III Le Plaisir.
Muito bom. A manter o nível de suspense. Parabéns.