No capítulo anterior: Passam-se seis meses. Carlos partiu as duas pernas na queda da Gaia e está longe de andar direito ainda. Chega finalmente a hora da temida primeira missão para Sebastião. Carlos, devido à sua nova condição, fica em “terra”.
“Gooooooolooooo!”, a bancada estremeceu toda, como se estivéssemos no epicentro de um pequeno sismo de magnitude local. De repente, os que estavam acima de nós precipitaram-se para baixo e fomos arrastados, com grande espalhafato, em direcção à vedação, caindo todos uns por cima dos outros. Visto de fora era uma bizarra cena de pânico com os intervenientes contagiados por uma felicidade louca. Recompostos e levantados, escalámos a bancada de volta aos nossos lugares. Bombos gigantes começaram a ribombar e os adeptos abraçados, alguns em lágrimas, começaram a cantar, movendo-se lateralmente numa corrida louca, ora para um lado, ora para outro, “Boaaaaaaviiiiista!” Nós, entrelaçados na turba humana, também corríamos, também gritávamos, deixando-nos contagiar pelo sentimento eufórico. Havia algo de tremendamente humano naquele extravasamento emocional colectivo, algo primitivo ou primordial que continuava a funcionar como um escape a um mundo cada vez mais tecnológico e desumano.
Quando as coisas acalmaram um pouco, gritei para Li: “Que é que estamos aqui a fazer?”
Li, embora abraçado a um Boavisteiro, estava circunspecto e sereno como sempre. “Estamos a ver futebol. ”
“No meio da claque?”
“Gosto da emoção, porque o jogo em si já não tem piada nenhuma, desde que deixou de haver árbitro em campo.”
Um grito, mesmo atrás de nós, cortou-nos a conversa. “Filho da puta de computador, isso não é fora de jogo nem aqui, nem na China”, à falta de árbitro os protestos eram dirigidos para uma entidade abstracta geralmente referida como o “fdp do computador”. Primeiro fora o chip na bola, depois um chip em cada jogador e finalmente um em cada chuteira. Um sistema de análise de dados e imagens 3D, referenciava o jogo em tempo real, parando-o, com um apito electrónico no sistema de som do estádio, sempre que era cometida uma infracção. A análise da infracção surgia então esmiuçada ao milímetro no ecrã gigante e uma voz artificial e pré-gravada, como a dos GPS antigos, surgia para referenciar a falta. Sem uma presença humana a quem dirigir os habituais protestos, no início assistiram-se a cenas caricatas, com os jogadores a correrem em todas as direcções, outros a olharem para o céu, como se uma entidade divina tivesse marcado a falta. Depois habituaram-se e arranjaram novas formas de teatro, suscitavam a piedade e inocência com gestos estudados para o público, como os gladiadores da Roma antiga, faziam birras ou até pequenas mímicas que se transformavam em imagens de marca. Em caso de faltas mais graves, penalties por exemplo, e sem o carrasco em campo, muitas vezes pegavam-se em pancadaria geral, algo que se tornou de tal maneira frequente que passou a fazer parte do espectáculo, quase como no hóquei em gelo. Quando eclodia a pancadaria, entrava em campo uma equipa de intervenção especial criada pela FFE1 chamada EEA, Equipa Especial de Apaziguadores, eram de tal forma eficazes que às vezes mal punham um pé dentro das quatro linhas o tumulto parava de imediato e o jogo prosseguia , para grande decepção do público.
“Sim, isto parece um video game, não fosse a batatada e era entediante como o caraças.”
O intervalo chegou e fomos para outra zona do estádio. “Observa tudo com atenção, pois pode vir a ser muito útil. A ideia é aproveitar o jogo, para reconhecer o terreno sem dar nas vistas, não há nada como o reconhecimento no terreno real, não gosto de plantas e esquemas.”
“Então vai ser aqui a missão, no Estádio do Bessa séc. XXII?”
Com um olhar severo mandou calar-me: “Falamos nisso mais logo…no Red October.”
Chegara a Portugal há cerca de uma semana. A viagem decorrera sem problemas e devido ao chip pirata desembarcara em Leixões sem constrangimentos de maior, a minha condição de hirsuto barbudo ajudava também ao disfarce, mas mesmo assim estava confinado à cave do Red OctoberTattoo, um dos esconderijos das BMV em Portugal. Era com agrado que saíra da toca bafienta para ir ao futebol.
“Repara, este é um Estádio ultramoderno reconstruído para o próximo século e aqui em baixo ainda existem grades com portas tradicionais…são estes pormenores que fazem a diferença no terreno…” Estávamos debaixo de uma das bancadas laterais, do lado oposto da tribuna de honra, onde uma espécie de parede de grades metálicas separava a zona do público de um parque de estacionamento. “Temos de conseguir uma chave para esta porta de grades, e deixar aqui uma viatura pronta para a fuga, uma vez na viatura saímos nas calmas pelas traseiras do estádio.” Voltámos para cima, para a segunda parte. “No fim do jogo vamos encontrar-nos lá fora, junto à estátua da Pantera, com um camarada nosso que trabalha aqui no clube.”
A vitória sorriu à equipa da casa. Foi assim num ambiente de grande alegria que saímos do estádio e nos dirigimos para a estátua da Pantera. Junto à estátua, existia outra, uma figura humana em tamanho real, representava uma figura austera, com ar de estadista, com os dois braços ligeiramente levantados e com os dedos indicadores espetados a apontar para o ar. Muitos adeptos passavam e davam um beijo à estátua, um deixou um cachecol, outros flores axadrezadas, uma inovação das mais recentes na clonagem de flores.
O movimento era intenso e a multidão imensa. O Boavista, clube quase bicentenário da cidade do Porto, era um carrossel demoníaco para os seus adeptos. Numa década podiam ser campeões, na outra a seguir podiam cair na terceira divisão vítimas de escândalos de corrupção, como na seguinte podia ser comprado por uma holding de magnatas africanos do sector energético e transformar-se num colosso do futebol europeu, com várias Ligas dos Campeões no seu palmarés. A revolução tratara bem o Boavista, passara pela nacionalização sem problemas e hoje a cavalgava o “capitalismos selvagem de estilo Chinês” com grande à-vontade, capitalizando-se em abundância em África e mantendo-se, para grande alegria dos seus adeptos, no topo do futebol da Eurásia.
Um homem de cartola e laço axadrezado passou e ajoelhou-se em frente à estátua humana para uma pequena reza, depois levantou-se, fez uma festa na pantera e seguiu o seu caminho. Um tipo com cara de poucos amigos e ar desconfiado apareceu e fez-nos um sinal discreto para o seguirmos.
Quando nos afastámos um pouco, disse, nervoso, sem se virar para trás: “Caralho! mais valia estar um a cavalo da pantera e outro a tirar fotografias, não sabem ser mais discretos?”, e continuou a andar apressado, “vamos ali para a frente do liceu onde não está ninguém”, disse sempre a caminhar e sem se voltar para trás.
Quando estacámos em frente ao liceu, Li voltou-se para o homem: “No meio dos outros o teu nome será multidão, no meio do arrozal chamar-te-ão pelo nome com que nasceste.”
“Poupa-me aos teus ditados, chinoca. Quem é o cabeludo?”, rosnou o homem dando uma fungadela.
“Não te interessa…tens a chave?”
“Sim está aqui”, e entregou-nos a chave.
Li pegou na chave, verificou-a e disse rispidamente: “Agora desaparece, nunca nos viste por aqui, percebes?”
“Claro. Por acaso pareço-te um caralho de um amador?…”, susteve por uns segundos uma atitude de desafio, depois, perante um impávido Li, fungou e seguiu o seu caminho a resmungar.
“É curioso que ainda usem chaves…”
“É bem mais seguro que os chips…”, riu-se Li.
À noite, estávamos entretidos nas traseiras do Red October, onde existia uma cozinha improvisada. O gigante tatuador surdo era um excelente cozinheiro, um homem multifacetado, hábil com a agulha de tatuar, o bisturi ou a colher da sopa.
“Excelente esta canja de seitan, a folha de menta dá-lhe um travo diferente e delicioso.”
“Tens de agradecer ao Gong, é uma sorte tê-lo connosco”, disse Li.
Levantámos as tigelas na direcção do gigante e ele grunhiu num sorriso satisfeito.
“Já podemos falar sobre o que fomos fazer ao Estádio do Bessa séc. XXII.”
“Sim, já é tempo de discutir a missão ao pormenor.”
“Porque sou sempre o último a saber?”
“São as regras, já as conheces.”
“OK, o que vamos fazer no estádio então?”
“Um atentado.”
Começava a ficar com suores frios, apesar de tudo e do treino, não estava preparado para um atentado suicida ou algo do género: “Suicida?”
“Não. Não é o nosso estilo, já o devias saber a esta altura, será um rapto e assassinato selectivo de uma alta individualidade do regime.”
“Vai ser num jogo de futebol?”
“Não, num concerto…de…fado…”
Era verdade…a LG actuaria no estádio do Bessa na próxima semana, num multi-evento de música.
“Já sabes quem será o alvo, já está identificado?”
“Não, só se saberá na véspera, chegará pelo pombo…”
1 Federação de Futebol da Eurásia, organismo que substituiu a FIFA após a sua extinção e queda em desgraça por escândalos de corrupção sucessivos.
Na próxima semana será publicado a vigésima segunda parte. Obrigado. SM
Ilustração Vitor Baptista
Escalada 2084. XX Memento Mori.
Escalada 2084. XIX Sangue Suor e Lágrimas.
Escalada 2084. XVIII Ossos do Ofício.
Escalada 2084. XVII Ben&Jerry.
Escalada 2084. XVI Cavalo de Ferro.
Escalada 2084. XV Revelations.
Escalada 2084. XIII Estranhas Entranhas.
Escalada 2084. XII Outubro Vermelho.
Escalada 2084. IX Eterno Repouso.
Escalada 2084. VIII Banho de Sangue.
Escalada 2084. VII Erros Meus.
Escalada 2084. VI Shit Happens.
Escalada 2084. V O Império do Eu.
Escalada 2084. III Le Plaisir.
em pulgas! para o próximo capítulo.
Obrigado por acompanhares a história.
Boavistão!!!!!!!!!!!!