No capítulo anterior: A iniciação ao headpointing não corre muito bem a Sebastião. Carlos, por seu lado, acabou o dia pendurado na ponta da corda a girar como um pião…
Uma ritmada chiadeira marcava os meus passos no soturno corredor. Empurrava uma velha cadeira de rodas em direcção ao escritório do chefe, sentado nela estava um macambúzio Carlos. Não trocara ainda uma palavra com ele, desde que o fora buscar à enfermaria. Parei em frente à temida porta. Uma vez terminada a chiadeira das rodas, o silêncio instalou-se, pesado, gerando um pequeno impasse.
“Porque esperas para bater?”, disse Carlos de acentuado mau humor.
“Huuu…estava à espera que batesses tu.”
“E como queres que caralho me chegue à frente, com as duas pernas engessadas!”
“OK, OK.” Cautelosamente bati. Ouviu-se um seco: “Entre.”
Entrámos. Eu a empurrar a cadeira de rodas. Carlos lívido e sem se atrever a olhar em frente. O chefe estava entretido a escrever qualquer coisa numa pose, que parecia estudada, muito profissional, tendo ao lado, pousado e a fumegar, o famigerado charuto. Não levantou imediatamente a cabeça, para não nos dar demasiada importância e quando, finalmente, o fez, fitou-nos intensamente com o seu único olho, adquirindo este, por segundos, um brilho metálico, que me enervou a memória e me fez encolher a mão involuntariamente.
“Que magnífico par…”, disse em jeito de saudação. Nós, como que tomados de um súbito torpor, ficámos mudos.
Pegou no charuto e soltou uma baforada: “Um aleijado das pernas…e o outro da cabeça…um magnífico duo de facto.” Reclinou-se um pouco mais para trás, colocando os pés em cima da secretária. “Que é que vou fazer de vocês…” Fitou o tecto e pareceu meditar, uns minutos que pareceram horas para nós.
Voltou a olhar-nos e, para meu espanto, sorriu quase com ternura. Levantou-se, compondo o casaco e o colete, e disse jovialmente: “Então que escalada era essa que foi responsável por este desastre.”
“Gaia, a via chama-se Gaia, senhor…”, disse Carlos num fio de voz quase inaudível.
“E que tal, é muito difícil?”
“É senhor, bastante, uma das mais difíceis.”
“E perigosa…pelo que vejo.”, estava agora nas nossas costas e, com grandes passadas, começava a descrever círculos sobre nós.
“Sim, caindo da parte de cima é muito perigosa.”
“Um crux psicológico, como se diz”, atrevi-me a dizer numa tentativa de ajudar Carlos.
“Ah…também tens algo a dizer…foste tu que o convenceste a ir a esse… crux?”
“Ninguém me convenceu de nada”, cortou secamente Carlos, arrependendo-se imediatamente a seguir, o que o fez mudar de tom e lamuriar-se um pouco mais: “é tudo culpa minha, senhor.”
“Quais são os benefícios de escalar uma coisa…assim perigosa?”, continuou o chefe, num tom amigável, um tom que só era contrariado pelos círculos que, como um tubarão, ia descrevendo sobre nós.
“Nenhuns, senhor, nenhuns…é apenas um jogo.”
“Um jogo…um jogo…eu gosto que os meus homens se mantenham em forma, é um desastre quando se transformam em ociosos inúteis, mas o perigo verdadeiro gostaria que ficasse reservado para as missões, sabem…é uma mania que eu tenho…”
“Tem toda a razão, senhor, foi um erro de cálculo, não voltará a acontecer.”
“E que tal estão essas pernas?”
“Em bastante mal estado, estão as duas partidas, tenho gesso e esta armação externa com uns quantos parafusos… aí para uns seis meses…”
“Hum…sim deve ser extremamente doloroso, eu pela minha parte nunca parti nada…imaginem…mas conheço bem a dor…damo-nos bem. Conheço-a, respeito-a e aprendi a fazer dela uma amiga, especialmente desde o dia em que me esfaquearam e perdi o olho…” Subtilmente retirou um punhal de dentro do casaco e levou-o à luz para o contemplar melhor. “Fiquei com ele como recordação, tem uma lâmina afiadíssima, o seu dono, infelizmente, já não está entre nós…” Num gesto rápido, mas calmo, levou a ponta do punhal até bem próximo do olho esquerdo de Carlos, este, sem tempo para reagir, ficou paralisado sem se atrever a mexer um pelo. “Já imaginaste, Carlos, o que será uma facada num olho…”
Voltou a guardar o punhal e delicadamente afastou-me para o lado, começando ele próprio a empurrar Carlos pela sala, como se estivesse a mostrar-lhe a casa: “Muito doloroso…muito doloroso…”, ia dizendo.
“Mas esta cadeira chia horrivelmente…”, disse estacando subitamente, “vamos já remediar isto.” Dirigiu-se a uma prateleira e pegou num pequeno spray que estava ao lado de uma arma. “Este lubrificante para armas deve servir.” Pousou um joelho no chão e oleou os rolamentos da cadeira criteriosamente. Levantou-se, empurrou a cadeira para a frente, depois para trás, uma e outra vez, até que pareceu satisfeito. “Ah…muito melhor agora.”
Continuou a volta à sala, empurrando a cadeira. “A dor tem sido uma constante na minha vida, e não só a dor física…”, e quando parecia preparar-se para contar a história da sua vida, com uma poderosa torção virou a cadeira e atirou Carlos ao chão. Este caiu de lado como um boneco e começou imediatamente aos berros contorcendo-se. No segundo a seguir, o chefe imobilizou-o com uma mão e um joelho. Com a mão livre apertou-lhe um dos parafusos da armação da perna, começando a berrar tresloucado, sobrepondo-se aos gritos do próprio Carlos.
“Filhos da puta! Aqui ninguém se põe em perigo sem eu mandar”, e apertou com mais força o parafuso.
Era como se uma tempestade furiosa se abatesse subitamente sobre nós, deixando-nos paralisados de terror, o homem parecia explodir de raiva e berrava como um trovão: “Entendes! Eu decido se arriscam ou não, se vivem ou se morrem, eu, entendem?!? Não vocês, em estúpidos jogos!”. Carlos, imobilizado, já não conseguia gritar e parecia prestes a desmaiar quando o chefe, finalmente, o largou.
Levantou-se, compôs o colete e o casaco, e voltou a acender o charuto, enquanto, no chão, Carlos gemia e se contorcia em choque: “Ajuda-o a levantar-se e tira-me este inútil da minha frente…” Tirou mais uma baforada do charuto e com uma calma de aço, como se não se tivesse passado absolutamente nada disse: “Leva-o de volta para a enfermaria e quando voltarem a aparecer por aqui que seja sem essa estúpida cadeira.”
*
“Táque, táque, táque”, o som de um andarilho quebrava o silêncio do soturno corredor. Passaram seis meses, Carlos já não tinha gesso, mas estava longe de andar. A escalada fora dos treinos fora completamente proibida. Foram seis meses de treino intensivo e doutrinação. Estava agora capaz de manejar vários tipos de armas com destreza, aguentar severos interrogatórios, montar e desmontar explosivos e preparar venenos poderosos. Conhecia os vários princípios Marxistas de trás para a frente, dando por mim, por vezes, estranhamente convencido que eram a única solução para o mundo. Preso naquele mundo fechado, todos os dias a ouvir a mesma coisa, abraçara aquela realidade, descobrindo na utopia um farol sobre um mundo de trevas e começando a acreditar que os meios justificavam os fins para se atingir essa luz.
Seis meses depois, lá estávamos nós de novo, no impasse à porta do chefe, no jogo psicológico do empurra a ver quem é que batia à porta. Carlos estava magro como um cão e com dois palitos a fazer de pernas, eu era agora dono de uma boa cabeleira e uma séria barba, não demasiado grande, quando às vezes usava uma boina diziam-me que ficava igualzinho ao Che.
Entrámos apreensivos, os resultados de uma reunião com o chefe eram imprevisíveis, especialmente se alguma coisa irritasse o homem.
Desta vez, encontrámo-lo de pé, impecavelmente vestido de smoking e, não fosse a pala, dir-se-ia que era um lorde inglês acabado de se vestir para o jantar. Recebeu-nos com um sorriso cordial e fez-nos sinal para nos aproximarmos. Segurava uma antiga nota com uma pinça e examinava-a com uma lupa. Era uma antiga nota de 500 Euros.
“Magnífico exemplar de papel-moeda, senhor, é uma pena que já não se use”, disse Carlos solícito.
O Chefe baixou a lupa e olhou para ele sorridente, depois adquiriu um tom sério quando disse: “O dinheiro deixou de nos sujar as mãos ,mas no entanto continua a sujar-nos a alma… tudo começou com isto…o Euro e a sua crise…tudo começou com a utopia do Euro…”
Pousou delicadamente a nota numa vitrina, onde estava exposta em conjunto com outros objectos.
“Não o sabia entusiasta da numismática, senhor”, disse eu, tentando fazer conversa de salão.
“Nada disso, nada disso, colecciono apenas objectos antigos e simbólicos, quando os contemplo e estudo, ajudam-me a focar no essencial da nossa luta, apenas isso…esta caveira por exemplo…” E retirou da vitrina uma caveira humana em tamanho real cravejada de brilhantes. “O que vos parece?”
“Eis um símbolo perfeito do capitalismo e da ganância”, disse Carlos.
“A mim parece-me uma imitação perfeita da caveira de Damien Hirst, como é que se chamava aquilo…”
“For the Love of God…”
“Exactamente… a vitória sobre a decadência…a vitória sobre a morte…”, os brilhantes ofuscavam-me. “É uma imitação notável.”
“O que te faz pensar que é uma imitação…”, e voltou a colocar a caveira na vitrina, “pareço uma pessoa que gosta de imitações…”, e fitou-me atentamente com o único olho.
“Bom, o original vale milhões, é umas das obras de arte mais caras de sempre, depreendo por isso que será uma imitação, não?”
“Ora aí está, ora aí está… não seria perfeito estar aqui uma das obras máximas do capitalismo, aqui tristemente perdida, sem valor nenhum, despojada da sua essência, o seu valor, não seria esse o símbolo perfeito para a nossa luta?…”
“De facto…”
“Mas como, muito bem disse Carlos prefiro vê-la como um símbolo de ganância e não de vitória, um rio de sangue poderia brotar eternamente deste objecto…É por isso que prefiro esta”, e retirou outra caveira, ao natural por assim dizer, e passou-ma para as mãos. “Sentes o peso da mortalidade?” Ficou parado a observar-me enquanto puxava do charuto. “Dir-se-ia que pareces Hamlet.”
“Será de Yorick esta caveira, Senhor?”
“Não, não se chamava Yorick…”, e o olho brilhou intensamente.
“Mas não vos chamei aqui para discutir arte memento mori”, disse pegando novamente caveira que eu lhe devolvi. “Se bem que queria que tivessem bem consciência da vossa mortalidade e que…ela está por assim dizer nas minhas mãos”, ia afagando a caveira sinistramente enfatizando assim de modo bastante convincente as suas palavras. “ Bom, mas penso que esse ponto está claramente esclarecido, vamos tratar de negócios.” E colocou a caveira na vitrina, fechando-a à chave.
“Um barco da Tofu-Brothers parte esta noite de Riga, dentro de três noites poderá ser interceptado”, olhámos um para o outro, desta vez a surpresa era para os dois pelos menos, depois dirigindo-se para mim: “És esperado nesse barco, por isso podes começar a fazer os preparativos para partir, desta vez sairás de Grimsby que é mais perto daqui, o processo será o mesmo, sais num barco de pesca e interceptam o porta-contentores durante a noite.”
“E eu?”, Carlos estava estupefacto.
“Não há lugar para aleijados nesta missão.”
“Mas preparei-a durante meses, merecia estar lá pelo menos.”
“Não andasse a brincar às escaladas, agora ficas na doca, de resto está tudo preparado lá…”
“Lá onde?”, perguntei.
“Em Portugal.”
“Mas ele não está pronto”, disse Carlos.
“Não são essas as informações que me chegam, de resto o Li andará sempre por perto.”
“Preparado para quê exactamente? Que missão vai ser esta?”, disse eu.
“A seu tempo o saberás, a seu tempo…só conhecerás o objecto da missão pouco antes da execução, é sempre assim com os novos recrutas, de resto o importante não é saber o objectivo, o importante é saber se vais hesitar quando chegar o momento da execução.”
“Não vou falhar. Ao contrário dos inimigos do Marxismo verdadeiro, acredito que a verdade está na acção, só a acção interessa, por isso é-me indiferente o objectivo desde que sirva a nossa causa.”
“Ah…a praxis…e se praxis te colocar pela frente alguém que admiras, ou um amigo até…”
“Não tenho amigos, apenas causas.”
Na próxima semana será publicado a vigésima primeira parte. Obrigado. SM
Ilustração Vitor Baptista
Escalada 2084. XIX Sangue Suor e Lágrimas.
Escalada 2084. XVIII Ossos do Ofício.
Escalada 2084. XVII Ben&Jerry.
Escalada 2084. XVI Cavalo de Ferro.
Escalada 2084. XV Revelations.
Escalada 2084. XIII Estranhas Entranhas.
Escalada 2084. XII Outubro Vermelho.
Escalada 2084. IX Eterno Repouso.
Escalada 2084. VIII Banho de Sangue.
Escalada 2084. VII Erros Meus.
Escalada 2084. VI Shit Happens.
Escalada 2084. V O Império do Eu.
Escalada 2084. III Le Plaisir.
Grande capítulo. Começam a ser repetitivos os comentários. Que sirvam ao menos de empurrão para voos mais altos.
Muito bom.