No capítulo anterior: Do pub para a falésia, tudo é novo para Sebastião, uma rocha nova, protecções naturais…top-rope…O bando instala-se e as coisas começam a aquecer quando Carlos descobre que a via Gaia, o seu objectivo, está interdita à escalada em top…
Uma palmada seca, bem assente nas costas de Carlos pela minha mão, ecoava ainda quando disse: “Anima-te pá! Parece que viste um fantasma!”
“Não conheces a via…”, disse Carlos, assumindo uma lividez quase cadavérica.
“Ninguém te obriga a lá ir.”
“Vai ter de ser, vou ter de tentar mesmo assim…”, murmurou para si próprio cerrando os punhos e fechando os olhos, numa espécie de reza de auto-motivação, depois virou-se para mim: “Há dois anos que não me sai da cabeça, na altura encadeei em top, mas não tive coragem para ir à frente, agora sei que estou bastante mais forte, nunca me iria perdoar se não tentasse…pelo menos tentar…”
“Brilliant!”, interrompeu o desgrenhado mascador de tabaco, apercebendo-se da teimosia de Carlos. “Nunca mais ninguém fez aquilo, desde a proibição”, e brindou-nos com mais uma cuspidela.
“Quem fez, fez, quem não fez, fiiiizesse, é o que eu costumo dizer”, rematou o desdentado, brindando-nos, para não ficar atrás do seu amigo, com um bonito sorriso.
Traçado o plano principal passámos ao real business. Carlos deu-me uma aula básica sobre entaladores e as especificidades de colocá-los na gritstone. Eram aparelhos rudimentares, de aspecto bastante inseguro e acima de tudo sem sensor de peso. Não percebia como se podia comprovar uma ascensão com estas ancoragens. Não podia. Voltava a ser à moda antiga, na base da confiança e dos testemunhos directos.
Finalmente chegou a minha vez de experimentar headpointar. Uma placa de 20 metros atravessada por duas fissuras diagonais no primeiro terço. Instalámos o top e trabalhei aquilo um bom bocado. Os movimentos eram delicados e inseguros, mas bastante exequíveis, em duas ou três tentativas consegui encadear. Confiante, e aproveitando a corda por cima, meti as protecções naturais, sem prestar muita atenção e sem testar demasiado. Um dispositivo articulado mecânico com umas peças curvas que abriam e fechavam, ao qual davam o nome de amigo, serviu para as fissuras. Num buraco esquisito, e seguindo as instruções de Carlos, meti um piton em V à mão, ficando o bicho apenas entalado e a fazer alavanca. Na parte superior, a parede era lisinha, uns áplates e uma pequena réglete dentada, a melhor presa, era o que existia. Carlos dissera-me que tinha duas opções ou colocava uma unha com fita adesiva na presa dentada como protecção psicológica para ir para cima, ou não colocava nada e usava a presa para escalar, arriscando uma queda perigosa mas não mortal. Resolvi colocar a unha.
Na base olhei para a via enquanto me preparava para escalar. Dois amigos nos primeiros 10 metros, um piton e para finalizar uma unha. Visto assim, não era muito. Comecei a engolir em seco e a ter dúvidas.
“Achas que chega?…”
“Desde que não caias…”, disse Carlos rebuscando qualquer coisa na mochila. Tirou um capacete e entregou-mo.
“Nunca escalei de capacete, volta a guardar isso.”
“Acho que és capaz de precisar…leva, além do mais se não chegarmos inteiros à quinta, o que não partirmos aqui, partem-nos lá, não acham muita piada a andar-mos aqui a arriscar o coiro, felizmente nem sonham que fazemos este género de escalada, pensam que só escalamos em top.”
“Humm… OK”, a ideia do chefe furioso e descontrolado foi apelativa o suficiente para me estrear na escalada com casco. Coloquei-o na cabeça, limpei os gatos e preparei-me para subir. Estava com uma sensação estranha, sentia as mãos a suarem, sabia que não era fisicamente possível, mas que sentia, sentia.
Comecei. Os primeiros metros decorreram tranquilos, passei os friends, pareciam seguros, mas não “à bomba” como garantira o Carlos. Com os pés na fissura, estava na altura de embarcar na placa. Não me decidia a abandonar aquela posição de conforto, o slot com o piton estava a quilómetros de distância. Um passo aqui, uma posição de equilíbrio ali, um ligeiro resvalanço e estava ao nível do piton. Protegi e respirei fundo, faltam 7 ou 8 metros, os mais complicados. Cheguei ao nível da unha já à rasca e com os braços inchados. A famigerada mistura de ácido láctico e adrenalina começou a tomar conta do meu discernimento, tentei concentrar-me e agarrar-me à sequência de passos que tinha trabalhado. Uma blocagem de esquerda num áplate foi levada ao limite, pois não me atrevia a mexer os pés, um erro fatal em placa. Só que a presa de recepção estava ocupada pela unha, fiquei ali uns segundos sem alternativas e comecei a entrar em pânico, lentamente, mas definitivamente em pânico. A queda tornou-se eminente e, antes que passasse a uma certeza, agarrei a cinta da unha passei a corda no mosquetão, mais rápido que a minha própria sombra. Fiquei ali, completamente imobilizado, arquejando, e tentando não mover nem um pelo para precária unha não saltar.
“Pussssyyy!”, ouço gritar de baixo, no meio de gargalhadas, fiquei vermelho como um tomate mas só consegui balbuciar: “Rápido… rápido, uma corda…uma corda.”
Um dos ingleses foi à volta e para minha vergonha lá escalei o resto da via agarrado á corda salvadora. Quando desci estava lívido e exausto como se tivesse escalado 20 vias, respirava com dificuldade.
“Então, é um solo, heim?…”, disse Carlos triunfante.
“Pá, passei-me não me consegui controlar, é realmente um jogo de cabeça.”, disse enquanto me sentava e tirava o capacete.
Um dos ingleses olhava a cena admirado: “Era a primeira vez que escalavas a abrir aqui?”
“Iá…”, respondi enquanto a respiração normalizava.
Virando-se para Carlos: “A primeira vez….e metes o gajo na Slab From Hell?”
Carlos riu-se. “Ele é rijo…”
O inglês afastou-se a abanar a cabeça. Passado um pouco foi a vez de Carlos escalar. Limpou a via com mestria e confiança. Quando baixou disse: “Estou pronto para tentar a Gaia”.
A notícia rapidamente correra a falésia inteira. Quando nos aproximamos da via a plateia já estava bem composta com todos os nossos amigos recentes e outros que aparecerem para a festa.
A conversa, animada, gerava um ruído de fundo, uma espécie de estática. Carlos tossiu ruidosamente e a conversa baixou um pouco de tom, passando a uma surdina, aqui e ali ouviam-se frases soltas: “Dois anos sem repetições e tinha de vir um estrangeiro tentar.”
“De onde é?”
“De Portugal.”
”Onde fica isso?”
”Burro! é uma das províncias da Eurásia, aquela onde produzem o Vinho do Porto.”
Carlos soltou mais uma tosse seca, como um maestro que bate com a batuta, acompanhada de um olhar severo para a plateia. O silêncio instalou-se pesado, pressagiando a acção iminente. Acendraram-se alguns cigarros e charros e Carlos voltou a enfrentar a plateia com um olhar gelado: “Do you mind? O fumo desconcentra-me.”
Os cigarros, respeitosamente, esmagam-se no chão marcando o início da escalada. Eu posicionei-me um pouco de lado, olhando para trás para ver se a costa estava desimpedida, pois tinha instruções claras para correr para baixo em caso de queda.
A primeira secção não lhe causou muitos problemas, colocou as únicas protecções possíveis na base e no lip de um pequeno tecto, testou-as, pareceu satisfeito e continuou. Um pé em aderência alto, um buraco seco para a mão esquerda e um passo rápido de decisão de mão direita para uma fissura dentro do diedro permitiu-lhe atingir a natural posição de layback para assim poder enfrentar o diedro seco. O primeiro crux, o mais duro, estava feito, as coisas pareciam estar bem encaminhadas e permiti-me relaxar um pouco, iam ser favas contadas, pensei. A audiência, no entanto, parecia cada vez mais tensa. Achei estranho e, pelo sim pelo não, resolvi concentrar-me. Um pouco mais de escalada técnica levou-o ao fim do diedro, a uma zona em que este se transformava numa espécie de meio tubo aplatado. Neste ponto, a escalada de Carlos, precisa e confiante até ali, começou a descambar. Um ligeiro tremor de pernas numa aderência mais forçada, posições cada vez mais contorcidas, mostravam alguma indecisão e cansaço. De pernas abertas em máxima extensão, esticou-se ao máximo para apanhar, com a mão direita, o que parecia um grande áplate horizontal. Pousou a mão com delicadeza, pois realmente não se podia falar em agarrar, tentou, delicadamente com uma bandeira de perna esquerda, fazer a transferência do seu peso para a direita, apenas suspenso do áplate. A meio do precário movimento a mão direita saltou fora e Carlos foi cuspido da parede.
Tive a clara sensação de uma desaceleração temporal, pois tudo me pareceu acontecer em câmara lenta, atirei-me para trás e a grande queda pendular pareceu-me eterna. O som seco dos ossos a baterem na aresta e o grito que se seguiu aceleram-me os sentidos fazendo, desta vez, redobrar a velocidade dos acontecimentos. A queda terminara. Carlos girava, como um pião, na ponta da corda…
Na próxima semana será publicada a vigésima parte: Memento Mori. Obrigado. SM
Ilustração Vitor Baptista
Escalada 2084. XVIII Ossos do Ofício.
Escalada 2084. XVII Ben&Jerry.
Escalada 2084. XVI Cavalo de Ferro.
Escalada 2084. XV Revelations.
Escalada 2084. XIII Estranhas Entranhas.
Escalada 2084. XII Outubro Vermelho.
Escalada 2084. IX Eterno Repouso.
Escalada 2084. VIII Banho de Sangue.
Escalada 2084. VII Erros Meus.
Escalada 2084. VI Shit Happens.
Escalada 2084. V O Império do Eu.
Escalada 2084. III Le Plaisir.
Pronto. Agora, com este capítulo, intencionalmente ou não, fizeste com que toda a gente se possa identificar com a história. Boa descrição do ambiente. Bom conceito na ilustração, também. É um highball brutal… 😉