Escalada 2084. XIX Sangue Suor e Lágrimas.

Escalada 2084 XIX Sangue Suor e Lágrimas

No capítulo anterior: Do pub para a falésia, tudo é novo para Sebastião, uma rocha nova, protecções naturais…top-rope…O bando instala-se e as coisas começam a aquecer quando Carlos descobre que a via Gaia, o seu objectivo, está interdita à escalada em top…

 

Uma palmada seca, bem assente nas costas de Carlos pela minha mão, ecoava ainda quando disse: “Anima-te pá! Parece que viste um fantasma!”

 “Não conheces a via…”, disse Carlos, assumindo uma lividez quase cadavérica.

“Ninguém te obriga a lá ir.”

“Vai ter de ser, vou ter de tentar mesmo assim…”, murmurou para si próprio cerrando os punhos e fechando os olhos, numa espécie de reza de auto-motivação, depois virou-se para mim: “Há dois anos que não me sai da cabeça, na altura encadeei em top, mas não tive coragem para ir à frente, agora sei que estou bastante mais forte, nunca me iria perdoar se não tentasse…pelo menos tentar…”

Brilliant!”, interrompeu o desgrenhado mascador de tabaco, apercebendo-se da teimosia de Carlos. “Nunca mais ninguém fez aquilo, desde a proibição”, e brindou-nos com mais uma cuspidela.

“Quem fez, fez, quem não fez, fiiiizesse, é o que eu costumo dizer”, rematou o desdentado, brindando-nos, para não ficar atrás do seu amigo, com um bonito sorriso.

Traçado o plano principal passámos ao real business. Carlos deu-me uma aula básica sobre entaladores e as especificidades de colocá-los na gritstone. Eram aparelhos rudimentares, de aspecto bastante inseguro e acima de tudo sem sensor de peso. Não percebia como se podia comprovar uma ascensão com estas ancoragens. Não podia. Voltava a ser à moda antiga, na base da confiança e dos testemunhos directos.

Finalmente chegou a minha vez de experimentar headpointar. Uma placa de 20 metros atravessada por duas fissuras diagonais no primeiro terço. Instalámos o top e trabalhei aquilo um bom bocado. Os movimentos eram delicados e inseguros, mas bastante exequíveis, em duas ou três tentativas consegui encadear. Confiante, e aproveitando a corda por cima, meti as protecções naturais, sem prestar muita atenção e sem testar demasiado. Um dispositivo articulado mecânico com umas peças curvas que abriam e fechavam, ao qual davam o nome de amigo, serviu para as fissuras. Num buraco esquisito, e seguindo as instruções de Carlos, meti um piton em V à mão, ficando o bicho apenas entalado e a fazer alavanca. Na parte superior, a parede era lisinha, uns áplates e uma pequena réglete dentada, a melhor presa, era o que existia. Carlos dissera-me que tinha duas opções ou colocava uma unha com fita adesiva na presa dentada como protecção psicológica para ir para cima, ou não colocava nada e usava a presa para escalar, arriscando uma queda perigosa mas não mortal. Resolvi colocar a unha.

Na base olhei para a via enquanto me preparava para escalar. Dois amigos nos primeiros 10 metros, um piton e para finalizar uma unha. Visto assim, não era muito. Comecei a engolir em seco e a ter dúvidas.

“Achas que chega?…”

“Desde que não caias…”, disse Carlos rebuscando qualquer coisa na mochila. Tirou um capacete e entregou-mo.

“Nunca escalei de capacete, volta a guardar isso.”

“Acho que és capaz de precisar…leva, além do mais se não chegarmos inteiros à quinta, o que não partirmos aqui, partem-nos lá, não acham muita piada a andar-mos aqui a arriscar o coiro, felizmente nem sonham que fazemos este género de escalada, pensam que só escalamos em top.”

“Humm… OK”, a ideia do chefe furioso e descontrolado foi apelativa o suficiente para me estrear na escalada com casco. Coloquei-o na cabeça, limpei os gatos e preparei-me para subir. Estava com uma sensação estranha, sentia as mãos a suarem, sabia que não era fisicamente possível, mas que sentia, sentia.

Comecei. Os primeiros metros decorreram tranquilos, passei os friends, pareciam seguros, mas não “à bomba” como garantira o Carlos. Com os pés na fissura, estava na altura de embarcar na placa. Não me decidia a abandonar aquela posição de conforto, o slot com o piton estava a quilómetros de distância. Um passo aqui, uma posição de equilíbrio ali, um ligeiro resvalanço e estava ao nível do piton. Protegi e respirei fundo, faltam 7 ou 8 metros, os mais complicados. Cheguei ao nível da unha já à rasca e com os braços inchados. A famigerada mistura de ácido láctico e adrenalina começou a tomar conta do meu discernimento, tentei concentrar-me e agarrar-me à sequência de passos que tinha trabalhado. Uma blocagem de esquerda num áplate foi levada ao limite, pois não me atrevia a mexer os pés, um erro fatal em placa. Só que a presa de recepção estava ocupada pela unha, fiquei ali uns segundos sem alternativas e comecei a entrar em pânico, lentamente, mas definitivamente em pânico. A queda tornou-se eminente e, antes que passasse a uma certeza, agarrei a cinta da unha passei a corda no mosquetão, mais rápido que a minha própria sombra. Fiquei ali, completamente imobilizado, arquejando, e tentando não mover nem um pelo para precária unha não saltar.

Pussssyyy!”, ouço gritar de baixo, no meio de gargalhadas, fiquei vermelho como um tomate mas só consegui balbuciar: “Rápido… rápido, uma corda…uma corda.”

 Um dos ingleses foi à volta e para minha vergonha lá escalei o resto da via agarrado á corda salvadora. Quando desci estava lívido e exausto como se tivesse escalado 20 vias, respirava com dificuldade.

“Então, é um solo, heim?…”, disse Carlos triunfante.

“Pá, passei-me não me consegui controlar, é realmente um jogo de cabeça.”, disse enquanto me sentava e tirava o capacete.

Um dos ingleses olhava a cena admirado: “Era a primeira vez que escalavas a abrir aqui?”

“Iá…”, respondi enquanto a respiração normalizava.

Virando-se para Carlos: “A primeira vez….e metes o gajo na Slab From Hell?”

Carlos riu-se. “Ele é rijo…”

O inglês afastou-se a abanar a cabeça. Passado um pouco foi a vez de Carlos escalar. Limpou a via com mestria e confiança. Quando baixou disse: “Estou pronto para tentar a Gaia”.

A notícia rapidamente correra a falésia inteira. Quando nos aproximamos da via a plateia já estava bem composta com todos os nossos amigos recentes e outros que aparecerem para a festa.

A conversa, animada, gerava um ruído de fundo, uma espécie de estática. Carlos tossiu ruidosamente e a conversa baixou um pouco de tom, passando a uma surdina, aqui e ali ouviam-se frases soltas: “Dois anos sem repetições e tinha de vir um estrangeiro tentar.”

“De onde é?”

“De Portugal.”

”Onde fica isso?”

”Burro! é uma das províncias da Eurásia, aquela onde produzem o Vinho do Porto.”

Carlos soltou mais uma tosse seca, como um maestro que bate com a batuta, acompanhada de um olhar severo para a plateia. O silêncio instalou-se pesado, pressagiando a acção iminente. Acendraram-se alguns cigarros e charros e Carlos voltou a enfrentar a plateia com um olhar gelado: “Do you mind? O fumo desconcentra-me.”

Os cigarros, respeitosamente, esmagam-se no chão marcando o início da escalada. Eu posicionei-me um pouco de lado, olhando para trás para ver se a costa estava desimpedida, pois tinha instruções claras para correr para baixo em caso de queda.

A primeira secção não lhe causou muitos problemas, colocou as únicas protecções possíveis na base e no lip de um pequeno tecto, testou-as, pareceu satisfeito e continuou. Um pé em aderência alto, um buraco seco para a mão esquerda e um passo rápido de decisão de mão direita para uma fissura dentro do diedro permitiu-lhe atingir a natural posição de layback para assim poder enfrentar o diedro seco. O primeiro crux, o mais duro, estava feito, as coisas pareciam estar bem encaminhadas e permiti-me relaxar um pouco, iam ser favas contadas, pensei. A audiência, no entanto, parecia cada vez mais tensa. Achei estranho e, pelo sim pelo não, resolvi concentrar-me. Um pouco mais de escalada técnica levou-o ao fim do diedro, a uma zona em que este se transformava numa espécie de meio tubo aplatado. Neste ponto, a escalada de Carlos, precisa e confiante até ali, começou a descambar. Um ligeiro tremor de pernas numa aderência mais forçada, posições cada vez mais contorcidas, mostravam alguma indecisão e cansaço. De pernas abertas em máxima extensão, esticou-se ao máximo para apanhar, com a mão direita, o que parecia um grande áplate horizontal. Pousou a mão com delicadeza, pois realmente não se podia falar em agarrar, tentou, delicadamente com uma bandeira de perna esquerda, fazer a transferência do seu peso para a direita, apenas suspenso do áplate. A meio do precário movimento a mão direita saltou fora e Carlos foi cuspido da parede.

Tive a clara sensação de uma desaceleração temporal, pois tudo me pareceu acontecer em câmara lenta, atirei-me para trás e a grande queda pendular pareceu-me eterna. O som seco dos ossos a baterem na aresta e o grito que se seguiu aceleram-me os sentidos fazendo, desta vez, redobrar a velocidade dos acontecimentos. A queda terminara. Carlos girava, como um pião, na ponta da corda…

 

Na próxima semana será publicada a vigésima parte: Memento Mori. Obrigado. SM

Ilustração Vitor Baptista

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One Response to Escalada 2084. XIX Sangue Suor e Lágrimas.

  1. Pedro Rodrigues diz:

    Pronto. Agora, com este capítulo, intencionalmente ou não, fizeste com que toda a gente se possa identificar com a história. Boa descrição do ambiente. Bom conceito na ilustração, também. É um highball brutal… 😉

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