Escalada 2084. XVII Ben&Jerry.

Escalada 2084 XVII Ben&Jerry

No capítulo anterior: A chegada à base das BMV é marcada pelo terrível encontro com o chefe das operações, um encontro marcado a fogo…

 

O céu fechara-se para nós, não numa metáfora de mau gosto à nossa situação política, mas literalmente. Só passara um mês, mas já me sentia um daqueles emigrantes antigos, do tempo da crise do Euro, sempre apresentados como histórias de sucesso e a quem faziam perguntas estúpidas: De que é que sentes mais falta? , Sem dúvida do Sol e da comidinha!, novecentos anos de sangue suor e lágrimas desvaneciam-se nas areias de uma praia e num prato de sardinhas assadas, nunca nenhum respondeu do que sinto falta é do sal, do sal das lágrimas de Portugal, ou algo do género. Mas de facto faltava o Sol por estas paragens, as brumas envolviam-nos num manto constante fechando-nos sobre nós mesmos.

A mão curara com rapidez. A Quinta era dotada de uma excelente enfermaria, quase parecia um hospital de campanha. Restava a marca da queimadura, um sinistro círculo que me acompanharia para sempre como um sinal para pensar melhor antes de dizer o que quer que fosse. Leituras obrigatórias do Capital e outros tratados, seguidas de discussões em grupo com orientadores, que na realidade eram doutrinadores, eram seguidas de treinos físicos e treinos de combate com os mais diversos tipos de armas, aulas sobre explosivos e os mais diversos venenos químicos. Nunca mais vi o chefe. O Carlos, esse, estava sempre por perto.

Arranjaram-me um dispositivo hakado que mandava mensagens encriptadas e que permitia trocar mensagens com o Continente, não sei porque tinha sido brindado com aquela benesse, mas ia aproveitando para trocar mensagens com LG, que andava em tour pela Eurásia. Essas mensagens, cada vez mais intimistas, eram o único momento de paz no meu exílio, uma espécie de raio de sol no eterno manto cinzento que cobria aquelas terras.

Numa das noites, estava à lareira a limpar uma arma e a preparar-me para pegar numa edição rara de Uma Faísca Pode Incendiar Toda a Pradaria, quando Carlos apareceu.

“Amanhã vai estar seco”, disse de olhos brilhantes, “vamos tirar o dia para escalar…finalmente.”

“Isso também faz parte do act?”

“Magoas-me com esse sarcasmo, gosto mesmo de escalar é quase visceral para mim.”

“Desculpa…mas, para mim, nunca mais serás o mesmo, compreendes isso, não?”

“Compreendo que ainda estejas em choque com tudo isto, mas tens de te adaptar rápido não há tempo para mariquices aqui.”

“Ainda bem que o dizes, pois esta conversa estava quase a resvalar para um pequeno momento de intimidade sincera entre nós os dois.”

“Vai-te foder, não estou para te aturar…e ainda não te ouvi nenhum agradecimento por ter salvo a tua pele quando conheceste o chefe.”

Aquela reunião aquando da nossa chegada transformara-se num pequeno tabu, um assunto que evitávamos como se não tivesse acontecido. Mas com os ânimos a esquentarem viera logo à superfície, nada como um pouco de cólera para desenterrar os assuntos reprimidos.

Juntei as mãos e pus-me a afagar a queimadura: “Não me lembro de teres impedido gajo de me queimar com o charuto, e já agora quem é que aquele caralho pensa que é? O Coronel Kurtz?”

“Chiu!” Começou a sussurrar: “Fala baixo, não sejas burro, tiveste muita sorte…muita sorte os teus belos dias podiam ter acabado ali, sem mais, vê se aprendes a ter tento nessa língua.”

“O gajo é louco, já percebeste isso não percebeste, e outra coisa… o que queria ele dizer quando referiu a como as coisas se passam aqui?”

“Ainda não tivemos tempo de discutir esse aspecto da nossa actividade, estava à espera que amadurecesses um pouco mais…”

“Como assim?”

“Existe um ritual de passagem para cada recruta das BMV, antes de se tornar um verdadeiro membro.”

“Um ritual…o quê, reúnem-se todos e colocam aventais?”

“Lá ‘tás tu…quando é que vais encornar que tens de levar isto a sério…que a tua pele depende disso, que toda a gente aqui está disposta a morrer pelo futuro, que um céptico está abaixo de um insecto que casualmente pisamos com uma bota.”

Agora sim, as coisas estavam a aquecer: “OK, qual é o ritual então.”

Carlos virou-se para mim, o rosto adquirira uma expressão sombria quando disse sem hesitação: “Tens de matar alguém, o ritual é esse.”

“Matar…assassinar, queres dizer…uma pessoa qualquer, de forma gratuita?”

“Claro que não estúpido…não matamos de forma gratuita… só matamos aqueles que merecem morrer, os escolhos na grande torrente da nossa causa. A seu tempo, como a todos nós e se te provares capaz, ser-te-á atribuída uma missão.”

“Assassinar assim pessoas é sofrer de um complexo divino…”

“Deus não é para aqui chamado, e chega de conversa, que ainda não estás amadurecido para perceber estas coisas, terás uma missão, quando te julgarmos capaz de a executar, e é tudo que já estou com dores de cabeça…foda-se estava bem disposto quando aqui cheguei e a pensar em escalar…”

No dia seguinte levantámo-nos cedo e pusemo-nos a caminho na direcção de um pub, que servia de ponto de encontro aos escaladores locais antes de partirem para as falésias.

“Onde vamos escalar”, perguntei num bocejo embalado pelo movimento da carroça. O facto de ter o capuz na cabeça contribuía de forma decisiva para o estado de sonolência compulsiva.

“Já podes tirar, já estamos longe o suficiente, ainda não sei, geralmente decidimos o sector ou a zona no pub.”

“Conheces alguém por aqui?”, disse aliviado por se ter feito dia de novo.

“Sim, conheço alguns…vais gostar deles…”

O pub estava a abarrotar, de resto era o mesmo cheiro e o entulho do Old Job Inn, mas com mais ambiente humano. Sentámo-nos a uma mesa e pedimos café. Não tardaram a juntar-se a nós dois tipos.

Caaarlooos!¿ Que passa tio?”, disse um deles com uns cabelos à Rasta e uma argola no nariz.

Carlos, virando-se para mim, disse entre dentes: “Não distinguem muito bem Portugal de Espanha.” E depois para o inglês: “No passa nada, hehe, e vocês que tal? Prontos para alguma acção na grit

“Podes crer meu, está tudo louco, há um mês que não dava para sair para a rocha.” Fitava-me curioso: “ Não nos apresentas o teu amigo?”

“Ah, claro…este é o Sebastião.”

Viva, Sebastiao”, disse ele sem o til, “eu sou o Ben, John Ben e aqui o meu amigo é o Fred Jerry.”

Não tardaram a aparecer outros, cada vez mais éramos uma espécie de aves raras por ali, pois com o embargo as visitas de escaladores estrangeiros eram escassas. “Olá eu sou o Marck Ben”, dizia um. “Viva, Malcom Jerry, ao vosso dispor”, dizia outro. Por aí for a até que ficamos a conhecer todo o estabelecimento. Quando souberam que éramos do Porto gerou-se um pequeno tumulto. O Vinho do Porto era um bem precioso e muito raro, devido ao embargo só era possível obtê-lo por contrabando. Dissemos que infelizmente não tínhamos trazido nenhuma garrafa, mas íamos ver o que se conseguia arranjar. Fizeram-se encomendas para o pai, para a mãe, para a avó e para o tio numa extensíssima lista que o Carlos fingia apontar com zelo. A nossa popularidade subira em flecha ao ponto de começarem a entoar um hino de ébrios, assim cedo logo pela manhã, o que não admirava pois o pequeno almoço inglês era bem regado a cerveja.

A algazarra era geral. Empolgados pela perspectiva de grandes bebedeiras de Vinho do Porto, a normal conversa excitada de escaladores pré-dia-de-escalada assumira proporções épicas. Grandes vias eram escaladas no ar. Movimentos duríssimos eram simulados com as mãos, numa espécie de linguagem de surdos que só escaladores entendem. Quedas monstruosas. Mortes certas salvas por um triz. Peças que saltavam e descosiam fissuras inteiras. Fissuras que engoliam peças e até escaladores inteiros. Solos terroríficos e frigoríficos voadores. Poder-se-ia dizer que quase todos tinham escapado às garras da morte várias vezes e de diversas formas e feitios e apenas tinham sobrevivido pela felicidade de poderem estar ali aquela hora a contar como foi.

Discretamente virei-me para o Carlos: “Que excitação, vamos ser linchados se não arranjarmos o vinho”

“Na…Logo com a bebedeira esquecem tudo, e amanhã já não se lembram se eras Português ou Espanhol, e se te pediram Vinho do Porto ou presunto Pata-Negra”

Ri-me a bom rir, pedi mais café e virei-me para o Carlos: “Estes gajos só comem derivados de animais fritos, mesmo ao pequeno-almoço?”

“Bom…as batatas são de origem vegetal e olha está ali um tipo a comer feijões mas… como acompanhamento a um par de rins fritos…”

“Hargh….”, desviei o olhar para não vomitar. “Outra coisa estranha…têm todos Ben e Jerry como segundos nomes?”

“Iá, não batem mesmo bem da bola este Brits, segundo me disseram é uma espécie de homenagem a dois escaladores muito famosos que existiram por aqui, uns verdadeiros mitos.”

“Há… Claro! Ben e Jerry, Ben Moon e Jerry Moffatt…pois…por momentos pensei que era por causa dos gelados…”

Tentei meter conversa com um que se apresentou com Joaquim Ben Jerry: “O Jerry Mofatt de facto tinha um power descomunal, e o Ben Moon não lhe ficava atrás, marcaram de facto a história da escalada e não só aqui.“

“Moffatt, Moon? Quem são esses?”

“Então não escolheste o teu último nome como homenagem a esse mítico duo?”

“Que eu saiba não, o meu pai era brasileiro e a história que a minha mãe conta é que era fanático pelos Ben&Jerry’s…sabes…os gelados…”

 

Na próxima semana será publicado a décima oitava parte: Ossos do Ofício. Obrigado. SM

Ilustração Vitor Baptista

Escalada 2084. XVI Cavalo de Ferro.

Escalada 2084. XV Revelations.

Escalada 2084. XIV Álbion.

Escalada 2084. XIII Estranhas Entranhas.

Escalada 2084. XII Outubro Vermelho.

Escalada 2084. XI Aristides.

Escalada 2084. X Aves Raras.

Escalada 2084. IX Eterno Repouso.

Escalada 2084. VIII Banho de Sangue.

Escalada 2084. VII Erros Meus.

Escalada 2084. VI Shit Happens.

Escalada 2084. V O Império do Eu.

Escalada 2084. IV Rosebud.

Escalada 2084. III Le Plaisir.

Escalada 2084. II A Sombra de M. Giant.

Escalada 2084. I Chipados.

NBFolhetim. Escalada 2084. Um Drama Futurista. Introdução

2 Responses to Escalada 2084. XVII Ben&Jerry.

  1. Pedro Rodrigues diz:

    Isto está a começar a ficar negro. Vou comer um moon&moffat de sabor a limonete, para relaxar.

  2. VBaptista diz:

    “Há… Claro! Ben e Jerry, Ben Moon e Jerry Moffatt…pois…por momentos pensei que era por causa dos gelados…”

    Tentei meter conversa com um que se apresentou com Joaquim Ben Jerry: “O Jerry Mofatt de facto tinha um power descomunal, e o Ben Moon não lhe ficava atrás, marcaram de facto a história da escalada e não só aqui.“

    “Moffatt, Moon? Quem são esses?”

    “Então não escolheste o teu último nome como homenagem a esse mítico duo?”

    “Que eu saiba não, o meu pai era brasileiro e a história que a minha mãe conta é que era fanático pelos Ben&Jerry’s…sabes…os gelados…”

    Mt bom, he he he
    parabens Sergio!

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