No capítulo anterior: A chegada à costa Inglesa é atribulada e mal cheirosa para Sebastião, surpresa e assombro marcam o seu percurso até uma velha estalagem, onde o maior sobressalto chegou sob a forma de uma voz familiar…
“Carlos…que fazes aqui?…”, quase não conseguia articular as palavras, tal era o meu espanto.
“Viva, Sebastião!”, e dirigindo-se a Li: “A viagem correu bem?”
Um aceno foi tudo o que arrancou do circunspecto chinês. Eu estava mais confuso do que nunca, olhava para um e para outro, incrédulo, como se estivesse num jogo de ténis: “Vocês conhecem-se? Estás metido nisto, logo tu.”
“Tantas perguntas Sebastião…calma, primeiro vamos comer que deves estar faminto”, tirou um naco de tofu do casaco e atirou-o ao cozinheiro: “Frita isto, Patrick, para comermos com as batatinhas.”
“Bloody fucking vegan queers…”, resmungou o cozinheiro atirando o naco para a fritadeira.
Carlos sentou-se à mesa com um ar jovial. Um dos estranhos, que ali estavam sentados, fitou-o com um olhar diabólico.
Carlos evitou, deliberadamente, o homem que o fitava e continuou para o cozinheiro: “Venha de lá esse tofusinho, que eu não como nada de jeito desde que aqui cheguei.” Disse reclinando-se para traz na cadeira. Depois puxou de um cigarro e escarneceu: “Maldita ilha de selvagens comedores de cadáveres.”
Um dos homens sentados à mesa fez um esgar com a boca e começou a palitar os dentes, fazendo sobressair, deliberadamente, um canino.
“Bem podes mostrar os caninos, mas não podes negar que o mais racional é ser-se vegetariano, e com o tempo essas dentuças afiadas não passarão de meros vestígios”, fez um intervalo para uma longa baforada e continuou: “Repara no teu cóccix, por exemplo, na realidade é um vestígio de uma cauda e…que se veja não tens cauda nenhuma. Ou tens?”, fingiu procurar com o olhar. “Se calhar tens.” E desatou a rir, perante o homem que se fazia escarlate de raiva. Parecia estar à vontade e no comando das operações. Isso de certa forma tranquilizou-me, não me fazendo sentir tão isolado.
O cozinheiro juntou-se à conversa. Casualmente apoiou uma das mãos numa cadeira e pôs-se a chuchar os dentes, pensativo. Aquele barulho irritante marcou, como um pêndulo, uma espécie de compasso de espera, até que disse finalmente: “Vocês socialistas têm sempre a mania que são donos da verdade, mas digo-te que Marx não mandou ninguém ser vegetariano e devia comer muita carniiinha quando cá esteve.” Parecia cantar e foi especialmente melodioso ao dizer carninha. Consegui conter o riso a custo, Carlos, por seu lado, estava irritado.
“Cala-te Patrick e não deixes queimar o tofu, quando precisarmos do ponto de vista filosófico de um cozinheiro de taberna, chamamos-te.”
“Sod you! Bloody queer…”, resmungou o taberneiro, afastando-se zangado em direcção ao fogão.
“Carlos o que se passa, porque estás aqui?”, quase supliquei.
“Já falamos, já falamos, primeiro vamos empanturrarmo-nos com este manjar.”
Comemos até não podermos mais, depois saímos para o exterior. Tipos armados vigiavam o perímetro discretamente. Puxei de um cigarro e dei outro a Carlos, no fundo estava contente por o ver.
“Bom…vais começar a desenrolar…ou não…com que então és um agente duplo?”
“Duplo? Não, onde foste buscar essa ideia, nunca trabalhei para a Comissão”
“ Então e ser reservista do exército e o fanatismo marxista…”
“Faz tudo parte do disfarce é um act, uma encenação, para disfarçar a minha acção nas BMV”
Um operacional das BMV presente em Vale de Mao no dia e na hora da morte de MG, uma figura grande do regime ele próprio. Aos poucos começava a fazer terríveis associações: “Não me vais dizer agora que…que a morte de MG foi um assassinato político…uma espécie de atentado.”
“Sim, exactamente, chegaste lá…foi uma acção planeada ao milímetro pela nossa célula em Portugal e da qual eu fui o agente executante, ou o agente no terreno se quiseres.”
“Como o fizeste?”
“Muito simples, uma troca de cordas na confusão que se estabeleceu com a chegada da estrela, ninguém deu por nada. A corda estava preparada para partir quando fosse carregada meia dúzia de vezes, não me perguntes como que não fui eu que a preparei, nem sei como o fizeram. O que sei é que o filho da puta quando deu com os costados cá em baixo, nunca mais se levantou.”, e começou a rir-se de forma maquiavélica.
“Pobre diabo, era assim tão importante matá-lo para a vossa organização de merda?”, quase berrei sem me conter.
“O gajo que não se metesse na cama com a Comissão. O senhor atleta exemplo, o super-homem novo, o virtuoso cidadão. Assim, fodeu-se e bem…e não digas, a vossa organização, porque agora também é a tua organização. Termos-te salvo o cuzinho tem um preço, percebes isso não?”
“Percebo…claro…”, na realidade não percebia nada, ou só agora começava a perceber no que me tinha metido, “…e Rosebud, as suas últimas palavras?”
Carlos sorriu, quase envergonhado, e depois disse: “Caíste bem nessa…”, deu mais umas longas passadas, parecendo pesar as palavras, e depois virou-se para mim, “Na verdade… isso não quer dizer nada… como sabia que gostavas de cinema lembrei-me de te dizer isso, para despistar as tuas suspeitas. Tinha de inventar algo à pressa, pois o gajo não disse nada de mais. Quando peguei nele para o socorrer disse-lhe baixinho: Morre filho da puta, com os comprimentos das Brigadas. Ele, a custo, ainda conseguiu articular, Cabrão, e depois expirou.”
Sentia-me mais estúpido do que nunca, mais manipulado não podia ter sido. Após alguns segundos de perplexidade, perguntei: ” Só não entendo ainda uma coisa, porquê tanto trabalho em trazer-me até aqui, perpetuando a mentira do Rosebud?”
“No início, foi uma mentira quase inocente, depois, depois transformou-se noutra coisa, noutra coisa…e temos agora grandes planos para ti… mas por enquanto não te posso revelar nada, enquanto não nos encontrarmos com a cúpula em Sheffield, na nossa base operacional”
“Em Sheffield?
“Sim, é lá o nosso campo operacional e de treino, conveniente, heim?”, e deu-me uma cotovelada em jeito de piscadela. “Na capital da escalada inglesa.”
“Ainda se escala por aqui? Com as pessoas a viverem nestas condições? A escalada há muito que devia ter desaparecido.”
“Estes brits são duros de roer, o pessoal anda contente apesar de tudo, preferem viver assim que sob o jugo da Comissão, é uma coisa inexplicável, prezam o seu parlamento, a monarquia e a liberdade mais do que a eles próprios individualmente. Enfim, coitados, nunca progrediram como nós e continuam agarrados aos valores democráticos.” Riu-se um bom bocado e depois continuou: “E sim, a escalada sobreviveu, e continuam a escalar de forma tradicional ou clássica como se chamava.”
“Clássica?”
“Sim, é incrível, escalam com uns aparelhos do século passado, que ainda fabricam manualmente, chamados entaladores, fazem maravilhas com aquilo, vais ver…”
“Vou ver?”
“Claro, vamos aproveitar que estamos aqui para escalar ao máximo, unir o útil ao agradável, têm uma rochinha que é uma maravilha, chama-se gritstone tem um tacto miraculoso.”
Não sabia o que pensar, de uma fuga para a clandestinidade passara para um filme de espionagem terrorista e agora para uma fútil vigem de escalada, dava-me jeito alguma bipolaridade, para conseguir alternar de personagem.
“E como vamos para Sheffield? De carroça?”
“Achas? Nunca ouviste falar no famoso British Railways? Continua impecável e extremamente bem conservado e funcional só que…a vapor. Uma viagem no tempo para nós… o dia-a-dia para eles.”
Na próxima semana será publicado a décima sexta parte: Cavalo de Ferro. Obrigado. SM
Ilustração Vitor Baptista
Escalada 2084. XIII Estranhas Entranhas.
Escalada 2084. XII Outubro Vermelho.
Escalada 2084. IX Eterno Repouso.
Escalada 2084. VIII Banho de Sangue.
Escalada 2084. VII Erros Meus.
Escalada 2084. VI Shit Happens.
Escalada 2084. V O Império do Eu.
Escalada 2084. III Le Plaisir.