Escalada 2084. XIV Álbion.

 

Escalada 2084 XIV Álbion.

No capítulo anterior: Nas entranhas do Argus a história da Revolução é revelada, em primeira mão, por um dos seus protagonistas, a Sebastião. O futuro afigura-se mais assustador do que nunca…

 

Um pontapé nas costas foi-me servido, como pequeno-almoço, ao quarto dia de navegação: “´Tá a acordar poltrão!”

 A custo, peguei no meu saco e segui o esbirro até ao convés. “Mas ainda é noite escura!”, exclamei desconfiado.

“Por minha vontade não verias mais o dia, mas existem outros planos para ti…”, disse o marinheiro com um sorriso de escárnio a bailar-lhe no rosto.

Aos poucos, na grande massa negra do oceano, comecei a vislumbrar umas luzes a aproximarem-se. Uma embarcação minúscula aproximava-se do gigante Argus. Baixaram-me num bote até ao mar e passados uns minutos estávamos encostados à pequena embarcação. Um salto e já estava no outro barco.

Mal toquei no convés, estatelei-me no chão ao comprido, parecia coberto de visgo. Um cheiro fortíssimo invadiu-me as narinas fazendo-me vomitar instantaneamente em cima de umas botas de borracha.

Bloodyhell!”, berrou uma voz acima de mim. Era o dono das botas, um tipo enorme e hirsuto vestido de borracha até ao peito, a olhar para mim furioso. A custo consegui sentar-me, ainda a tempo de ver o Argus a afastar-se. Que barco seria este e o que levaria no porão com este cheiro nauseabundo.

“Que cheiro é este?”, disse levando a mão ao nariz instintivamente.

A tripulação era composta por três ou quatro homens, pareciam admirados e divertidos: “Fish, old chap, that’sfish.”, e desataram às gargalhadas, “This is a fishing boat.

Devia parecer extremamente confuso, pois eles continuaram: “Fish, you know? Fish and chips?”, e puseram-se a fazer que comiam com as mãos.

Foi assim, a bordo de uma traineira de pesca, que cheguei à costa de Inglaterra.

O dia clareava quando chegámos ao porto. O movimento era caótico. Grandes caixotes eram descarregados, uma multidão difusa e ululante aglomerava-se na doca a implorar por um peixe, eclodindo num motim sempre que os pescadores lhes atiravam alguma coisa. Gaivotas faziam voos picados tentando a sua sorte, enquanto uma espécie de polícia andrajosa distribuía bastonadas a belo prazer. Os meus recentes amigos, alheios à confusão, faziam cigarros, sorriam e diziam palavrões com gosto, pareciam satisfeitos e em casa. Era isto a Inglaterra? Para mim, para já, não passava de um cheiro, um cheiro fedorento.

Despedi-me dos pescadores e encaminhei-me para a saída do porto, ninguém parecia dar por mim no caos, principalmente porque não levava comigo nada parecido com um peixe. Sentia-me verdadeiramente um estranho em terra estranha. Não era necessário ser criado por marcianos e viajar no espaço, quando os marcianos éramos nós mesmos.

O caos continuava fora da doca. Não havia viaturas, pelo menos como eu as conhecia. Carroças eram puxadas por animais, que só conhecia de fotos de história. Seriam provavelmente cavalos e bois. Enormes e ameaçadoras criaturas resfolegantes no frio da manhã.

Um assobio fez-me virar a cara. Vinha de uma carruagem ou coisa parecida. Aproximei-me e, para minha grande surpresa, em cima da carroça, segurando o que deveriam ser umas rédeas, estava Arnaldo.

“Li? Não percebo nada. Como desembarcaste?”

“No mesmo barco que tu”, riu, “ não me viste porque estavas muito ocupado a vomitar. Sobe!”

Subi e sentei-me ao lado dele. Destravou a carroça e o animal começou a andar. Começámos a afastarmo-nos da zona portuária por ruas pejadas de lama e excrementos de animais, a abarrotar de gente num bulício constante. Decorreu assim uma hora, até que saímos da povoação para entrarmos numa auto-estrada de seis faixas.

“Este…veículo…pode circular aqui?”, perguntei incrédulo.

“Aqui podem”, respondeu, “não há outros…”

E de facto o trânsito de carroças, carros de bois, caleches e demais veículos movidos a animais era intenso, assim como o de bicicletas, muitas bicicletas, até pareciam ter uma faixa própria por causa dos excrementos. Nas margens circulava também muita gente a pé, a grande maioria com ar acossado.

“Não fazia ideia que isto era o resultado do embargo.”

“Isto? Isto…não é nada.”

O preço a pagar por ficar de fora da União das Repúblicas Populares da Eurásia, valia ao Reino Unido o estatuto de “Cuba do séc. XXI”. O petróleo há muito que não existia, novos combustíveis desenvolvidos com tecnologia chinesa, garantiam à Eurásia o monopólio mundial energético. O embargo total que durava há mais de 40 anos, provocara um declínio tecnológico acentuado, os motores de combustão interna que funcionavam a derivados de petróleo ficaram obsoletos. Sem acesso aos novos combustíveis, nem a novas tecnologias e sem capacidade para as desenvolver, a única solução fora o regresso ao carvão e ao vapor, fazendo uso das suas famosas jazidas. A electricidade tornara-se um bem muito escasso e só fornecido a edifícios públicos, a tracção animal voltara em força. A Inglaterra estava de volta ao séc. XIX.

Umas horas largas de viagem passaram e não se podia dizer fosse a correr. A princípio, o ritmo lento enervara-me, mas depois comecei a apreciar, havia tempo para olhar e pensar o que acontecia à nossa volta, como se fosse uma desaceleração temporal. Estava de facto noutro mundo. Um admirável mundo velho.

Saímos da auto-estrada e uma via secundária levou-nos até uma velha estalagem. Uma placa, presa a um ferro retorcido, rangia com a brisa da tarde. Dizia: The Old Job Inn. Entrámos. Um cheiro a fritos misturado com tabaco deu-nos as boas vindas. De resto, nada se mexeu na penumbra interior, a única clientela era um par de velhos desgrenhados, a beberricarem uma mistela preta em grandes canecas de vidro.

Sentámo-nos a um canto. As paredes, cobertas de alcatifa peganhenta, ostentavam fotos de outros tempos com pessoas felizes, em poses sorridentes, nos seus postos de trabalho. O chão estava coberto se serrim e beatas, um pasto ideal para as muitas baratas que por ali andavam a monte.

Um tipo ruivo enorme, envolvido num avental que em tempos teria sido branco, aproximou-se, era o estalajadeiro. Quando reconheceu o meu companheiro, abriu os braços gigantescos, como tenazes. Fez-se um ridículo compasso de espera, com o homem ali parado de braços abertos, até que Arnaldo, relutantemente, se levantou para se deixar esmagar. Todo o seu velho esqueleto rangia quando o estalajadeiro disse: “Arnaldo! You are fatter than ever! Welcome to the Old Job Inn!” , e redobrou a força do abraço. “Já vos trago algo para comer e beber, devem estar famintos.”

Eu estava maravilhado com a voz cristalina de tenor que saíra das entranhas da criatura, e observava divertido Li a ficar asfixiado. Por fim separaram-se e o homem afastou-se na direcção da cozinha.

“Já aqui havias estado?”

“Demasiadas vezes…”, desabafou Li, sentando-se e tentando recuperar o fôlego.

O estalajadeiro reapareceu: “Venham para dentro, estamos mais confortáveis na cozinha.”

Seguimo-lo por uma espécie de porta de saloon, para entrarmos na cozinha do estabelecimento. Pilhas de louça suja encastelavam-se em cima de bancas, um fogão a lenha escorria, literalmente, óleo para o chão, coberto de serrim como o resto do estabelecimento. Ao centro, numa mesa redonda, estavam sentados dois tipos com ar de poucos amigos e um terceiro, armado, estava de pé a vigiar a porta. “Sentem-se”, disse o estalajadeiro, puxando uma cadeira e pontapeando com raiva, ao mesmo tempo, uma ratazana que se lhe atravessara no caminho.

Os desconhecidos, não diziam palavra. Sentámo-nos. O nosso anfitrião colocou  em cima da mesa um monte de batatas e peixe frito, envolto em papel mata-borrão, e duas canecas de uma mistela preta. “Vá empanturrem-se, que precisam de encher essas peles.”

Sentia-me ameaçado por aquela comida desconhecida. Li, por seu lado, tirou uma batata delicadamente como se estivesse na presença da mais fina iguaria. Atrevi-me a perguntar: “Não terá algo vegetariano?”

“Não gostas de peixinho?”, disse o cozinheiro desatando a rir, “vais ter de te habituar a comida de homem, a partir de agora”, e escarrou para o chão, como que a acentuar o que acabara de dizer.

“És um javardo de merda, Patrick!” Alguém acabara de entrar e a voz era-me terrivelmente familiar.

“Carlos!?!”

 

Na próxima semana será publicado a décima quinta parte: Revelations. Obrigado. SM

Ilustração Vitor Baptista

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