No capítulo anterior: Nas entranhas do Argus a história da Revolução é revelada, em primeira mão, por um dos seus protagonistas, a Sebastião. O futuro afigura-se mais assustador do que nunca…
Um pontapé nas costas foi-me servido, como pequeno-almoço, ao quarto dia de navegação: “´Tá a acordar poltrão!”
A custo, peguei no meu saco e segui o esbirro até ao convés. “Mas ainda é noite escura!”, exclamei desconfiado.
“Por minha vontade não verias mais o dia, mas existem outros planos para ti…”, disse o marinheiro com um sorriso de escárnio a bailar-lhe no rosto.
Aos poucos, na grande massa negra do oceano, comecei a vislumbrar umas luzes a aproximarem-se. Uma embarcação minúscula aproximava-se do gigante Argus. Baixaram-me num bote até ao mar e passados uns minutos estávamos encostados à pequena embarcação. Um salto e já estava no outro barco.
Mal toquei no convés, estatelei-me no chão ao comprido, parecia coberto de visgo. Um cheiro fortíssimo invadiu-me as narinas fazendo-me vomitar instantaneamente em cima de umas botas de borracha.
“Bloodyhell!”, berrou uma voz acima de mim. Era o dono das botas, um tipo enorme e hirsuto vestido de borracha até ao peito, a olhar para mim furioso. A custo consegui sentar-me, ainda a tempo de ver o Argus a afastar-se. Que barco seria este e o que levaria no porão com este cheiro nauseabundo.
“Que cheiro é este?”, disse levando a mão ao nariz instintivamente.
A tripulação era composta por três ou quatro homens, pareciam admirados e divertidos: “Fish, old chap, that’sfish.”, e desataram às gargalhadas, “This is a fishing boat.”
Devia parecer extremamente confuso, pois eles continuaram: “Fish, you know? Fish and chips?”, e puseram-se a fazer que comiam com as mãos.
Foi assim, a bordo de uma traineira de pesca, que cheguei à costa de Inglaterra.
O dia clareava quando chegámos ao porto. O movimento era caótico. Grandes caixotes eram descarregados, uma multidão difusa e ululante aglomerava-se na doca a implorar por um peixe, eclodindo num motim sempre que os pescadores lhes atiravam alguma coisa. Gaivotas faziam voos picados tentando a sua sorte, enquanto uma espécie de polícia andrajosa distribuía bastonadas a belo prazer. Os meus recentes amigos, alheios à confusão, faziam cigarros, sorriam e diziam palavrões com gosto, pareciam satisfeitos e em casa. Era isto a Inglaterra? Para mim, para já, não passava de um cheiro, um cheiro fedorento.
Despedi-me dos pescadores e encaminhei-me para a saída do porto, ninguém parecia dar por mim no caos, principalmente porque não levava comigo nada parecido com um peixe. Sentia-me verdadeiramente um estranho em terra estranha. Não era necessário ser criado por marcianos e viajar no espaço, quando os marcianos éramos nós mesmos.
O caos continuava fora da doca. Não havia viaturas, pelo menos como eu as conhecia. Carroças eram puxadas por animais, que só conhecia de fotos de história. Seriam provavelmente cavalos e bois. Enormes e ameaçadoras criaturas resfolegantes no frio da manhã.
Um assobio fez-me virar a cara. Vinha de uma carruagem ou coisa parecida. Aproximei-me e, para minha grande surpresa, em cima da carroça, segurando o que deveriam ser umas rédeas, estava Arnaldo.
“Li? Não percebo nada. Como desembarcaste?”
“No mesmo barco que tu”, riu, “ não me viste porque estavas muito ocupado a vomitar. Sobe!”
Subi e sentei-me ao lado dele. Destravou a carroça e o animal começou a andar. Começámos a afastarmo-nos da zona portuária por ruas pejadas de lama e excrementos de animais, a abarrotar de gente num bulício constante. Decorreu assim uma hora, até que saímos da povoação para entrarmos numa auto-estrada de seis faixas.
“Este…veículo…pode circular aqui?”, perguntei incrédulo.
“Aqui podem”, respondeu, “não há outros…”
E de facto o trânsito de carroças, carros de bois, caleches e demais veículos movidos a animais era intenso, assim como o de bicicletas, muitas bicicletas, até pareciam ter uma faixa própria por causa dos excrementos. Nas margens circulava também muita gente a pé, a grande maioria com ar acossado.
“Não fazia ideia que isto era o resultado do embargo.”
“Isto? Isto…não é nada.”
O preço a pagar por ficar de fora da União das Repúblicas Populares da Eurásia, valia ao Reino Unido o estatuto de “Cuba do séc. XXI”. O petróleo há muito que não existia, novos combustíveis desenvolvidos com tecnologia chinesa, garantiam à Eurásia o monopólio mundial energético. O embargo total que durava há mais de 40 anos, provocara um declínio tecnológico acentuado, os motores de combustão interna que funcionavam a derivados de petróleo ficaram obsoletos. Sem acesso aos novos combustíveis, nem a novas tecnologias e sem capacidade para as desenvolver, a única solução fora o regresso ao carvão e ao vapor, fazendo uso das suas famosas jazidas. A electricidade tornara-se um bem muito escasso e só fornecido a edifícios públicos, a tracção animal voltara em força. A Inglaterra estava de volta ao séc. XIX.
Umas horas largas de viagem passaram e não se podia dizer fosse a correr. A princípio, o ritmo lento enervara-me, mas depois comecei a apreciar, havia tempo para olhar e pensar o que acontecia à nossa volta, como se fosse uma desaceleração temporal. Estava de facto noutro mundo. Um admirável mundo velho.
Saímos da auto-estrada e uma via secundária levou-nos até uma velha estalagem. Uma placa, presa a um ferro retorcido, rangia com a brisa da tarde. Dizia: The Old Job Inn. Entrámos. Um cheiro a fritos misturado com tabaco deu-nos as boas vindas. De resto, nada se mexeu na penumbra interior, a única clientela era um par de velhos desgrenhados, a beberricarem uma mistela preta em grandes canecas de vidro.
Sentámo-nos a um canto. As paredes, cobertas de alcatifa peganhenta, ostentavam fotos de outros tempos com pessoas felizes, em poses sorridentes, nos seus postos de trabalho. O chão estava coberto se serrim e beatas, um pasto ideal para as muitas baratas que por ali andavam a monte.
Um tipo ruivo enorme, envolvido num avental que em tempos teria sido branco, aproximou-se, era o estalajadeiro. Quando reconheceu o meu companheiro, abriu os braços gigantescos, como tenazes. Fez-se um ridículo compasso de espera, com o homem ali parado de braços abertos, até que Arnaldo, relutantemente, se levantou para se deixar esmagar. Todo o seu velho esqueleto rangia quando o estalajadeiro disse: “Arnaldo! You are fatter than ever! Welcome to the Old Job Inn!” , e redobrou a força do abraço. “Já vos trago algo para comer e beber, devem estar famintos.”
Eu estava maravilhado com a voz cristalina de tenor que saíra das entranhas da criatura, e observava divertido Li a ficar asfixiado. Por fim separaram-se e o homem afastou-se na direcção da cozinha.
“Já aqui havias estado?”
“Demasiadas vezes…”, desabafou Li, sentando-se e tentando recuperar o fôlego.
O estalajadeiro reapareceu: “Venham para dentro, estamos mais confortáveis na cozinha.”
Seguimo-lo por uma espécie de porta de saloon, para entrarmos na cozinha do estabelecimento. Pilhas de louça suja encastelavam-se em cima de bancas, um fogão a lenha escorria, literalmente, óleo para o chão, coberto de serrim como o resto do estabelecimento. Ao centro, numa mesa redonda, estavam sentados dois tipos com ar de poucos amigos e um terceiro, armado, estava de pé a vigiar a porta. “Sentem-se”, disse o estalajadeiro, puxando uma cadeira e pontapeando com raiva, ao mesmo tempo, uma ratazana que se lhe atravessara no caminho.
Os desconhecidos, não diziam palavra. Sentámo-nos. O nosso anfitrião colocou em cima da mesa um monte de batatas e peixe frito, envolto em papel mata-borrão, e duas canecas de uma mistela preta. “Vá empanturrem-se, que precisam de encher essas peles.”
Sentia-me ameaçado por aquela comida desconhecida. Li, por seu lado, tirou uma batata delicadamente como se estivesse na presença da mais fina iguaria. Atrevi-me a perguntar: “Não terá algo vegetariano?”
“Não gostas de peixinho?”, disse o cozinheiro desatando a rir, “vais ter de te habituar a comida de homem, a partir de agora”, e escarrou para o chão, como que a acentuar o que acabara de dizer.
“És um javardo de merda, Patrick!” Alguém acabara de entrar e a voz era-me terrivelmente familiar.
“Carlos!?!”
Na próxima semana será publicado a décima quinta parte: Revelations. Obrigado. SM
Ilustração Vitor Baptista
Escalada 2084. XIII Estranhas Entranhas.
Escalada 2084. XII Outubro Vermelho.
Escalada 2084. IX Eterno Repouso.
Escalada 2084. VIII Banho de Sangue.
Escalada 2084. VII Erros Meus.
Escalada 2084. VI Shit Happens.
Escalada 2084. V O Império do Eu.
Escalada 2084. III Le Plaisir.