Um adolescente, ou jovem adulto já, oriundo da República Checa inicia uma rampage furiosa por Espanha, escalando coisas que desafiam a imaginação dos mais audazes, coisas que são numeradas numa escala genérica e conhecida, mas que na realidade ninguém se consegue relacionar com elas. Num obscuro cantão da Suíça um rapaz escala 11 blocos acima de V11 no dia, vindo queixar-se a seguir que lhe falta força nos dedos, embora se confesse satisfeito com a força de braços. Num rancho Texano uma lenda viva da escalada serve panquecas, ao pequeno-almoço, a vários comensais, candidatos eles próprios a lendas vivas da escalada. No país do hexágono e dos croissants um nonogradista veio dizer que sim, que escala 9a, mas que fisicamente é como um bebé. Aqui ao lado em Espanha o Team Petzl aparece feliz e contente em Santa Linya a escalar vias de grosso calibre, a comer Pizas e a escalar postes, pelo meio – vejam o minuto 00:15 do vídeo – Espanha come Portugal. Será uma visão de, ou do futuro?
Assim ia o mundo, quando alguém abriu, literalmente, a caixa de Pandora em Nova York, causando um terramoto virtual. Só existe um assunto capaz de puxar os cordelinhos do escalador eticamente emancipado, ou não: os talhados.
Eis a história em duas ou três pernadas:
Uns tipos, anónimos até ao momento, fartos de talhados na sua zona local, segundo dizem no vídeo, resolveram fazer uma “espera videográfica “, do género batida ao javali, ficando à espera do potencial prevaricador. Aparentemente conseguiram os seus intentos e filmaram um tipo, com umas luvas ridículas, a talhar – ou a fazer uma limpeza agressiva? – forte e feio um bloco. A seguir, na linha narrativa do vídeo, foram ao local, filmaram os estragos e desenterraram, ou descobriram, as ferramentas do crime, mas infelizmente não as luvas, expondo-as alinhadas como se fosse uma apreensão de droga da PJ.
Não seria a primeira vez que um bloco era alterado na área, incluindo um “projecto de sonho com 15 anos” alterado. Se a suspeita existia e apontava numa certa direcção, não se percebe porque não o desancaram no local e na hora. Seria por o talhador ser famoso? Bom, isso pode ser de facto intimidante para os mais incautos. Ou seria por causa das luvas?
A seguir quiseram divulgar as imagens, de forma anónima evidentemente. Se colocassem no you tube , sem mais, provavelmente ficaria esquecido no meio dos Harlem Shackes, o que seria um problema, grande, por isso resolveram contactar um órgão de informação isento e avesso a polémicas. Mandaram então para a DPM.
O “flagra” caiu como ginjas na revista, embora reze a história que a sua publicação foi muito pensada pelos editores. Resolveram embrulhar o vídeo, volto a insistir anónimo, num artigo pedagógico sobre o acto de talhar. Assim, bem embrulhado, foi deixado cair no caldeirão da net, sempre alimentado, como se sabe, por um fogo infernal permanente de fazer corar o próprio Dante.
O embrulho pedagógico rapidamente ardeu. Em minutos, dizem, o escalador foi identificado e crucificado na praça pública e o local identificado e abençoados como um santuário. Um “patrocinador” envolvido, numa questão de horas e pelo Mighty FB fez o acto de contrição e renegou o seu antes magnifico atleta distanciando-se dele como se tivesse lepra.
O que se seguiu foi como um bombardeamento de napalm numa ceara alentejana, uma torrente de comentários e artigos de toda a espécie espalharam-se pela rede, num exemplo clássico do que aparentemente se chama internet rage. É curioso verificar os sites onde são feitos os maiores insultos.
Há quem denomine a nossa época como a “Idade da Raiva”, uma coisa criada pela internet e que se vê a olho nu em páginas de comentários avulsos. Basta ir a um site de um Jornal de grande circulação desportivo, por exemplo. Um processo psicológico chamado de “desindividuação” parece estar na origem do comportamento raivoso, o indivíduo protegido pelo anonimato e inserido num grupo é capaz de perpetrar actos que sozinho e de cara descoberta nunca sonharia praticar, o exemplo clássico é o Ku Klux Klan ou um linchamento. Nada como colocar um pouco de gravitas num assunto de escalada.
Existem nesta história dois pontos fundamentais, o direito à imagem e os talhados propriamente ditos. Comecemos pelo direito à imagem.
Não sendo um jurista, parece-me que os tipos não tinham o direito de filmar terceiros sem a sua autorização e ainda por cima divulgar de forma anónima a coberto de um órgão de grande circulação. É um acto cobarde puro e simples, assim como foi cobarde a não confrontação directa com o potencial prevaricador. Isto não é o Watergate, nem estes tipos que filmaram são o “garganta funda”, nem a DPM é o Washinton Post, se calhar se fossem, ou tentassem agir como tal, a história teria de ser verificada, as fontes cruzadas e investigadas e o resultado seria um pouco diferente, digo eu. Portanto se querem brincar ao jornalismo, que brinquem como deve ser.
Voltando ao assunto principal, e o assunto principal são os talhados. Este é um tema muito delicado, pois para o bem e para o mal, acompanham toda a história da escalada e contrariamente ao que se pensava, estão aí para ficar. Geralmente é envolvido em grandes doses de hipocrisia com muitas virgens ofendidas a revelarem pele de lobo debaixo das vestes. Não é um assunto, como tudo o que é complexo, que se possa abordar a preto e branco e que se possa dizer que se é contra e a favor simplesmente, existem muitas nuances e implicações éticas, tais como:
Até que ponto os talhados fizeram evoluir a escalada?
Até que ponto as celebradas grandes vias em livre do El Capitan, por exemplo, só são possíveis devido a talhados?
Até que ponto se pode ser contra os talhados e depois escalar em vias talhadas?
Porque é que em vias de desportiva é “aceitável” e no bloco não?
Quais as razões de talhar? Umas serão aceitáveis outras não? Onde será a fronteira?
O evento trouxe a discussão dos talhados de volta à espuma mediática. Um artigo de Bil Ramsey na Rock and Ice foi muito citado e discutido. Bil é professor de filosofia e, no artigo citado, pega nos argumentos usuais contra os talhados e tenta rebate-los um a um analiticamente, partindo do principio que não podemos renegar a própria história da escalada da qual os talhados fazem parte, para o bem e para o mal. Aborda assim o que para ele a maioria dos escaladores considera um anátema: “uma defesa limitada dos talhados”. Um ponto de vista polémico, corajoso e bem defendido, a discussão pode ser seguida aqui com respostas do próprio Bil ou aqui também.
Por fim um artigo publicado no excelente The stonemind parece dar uma resposta simples e zen, ao gosto do autor, a este assunto. Nele é advogado que devemos encarar um pedaço de rocha que vamos escalar com uma vénia ao estilo do Karaté, uma vénia mental subentenda-se. Se respeitarmos o nosso adversário, respeitamo-nos a nós próprios. Um pequeno grande artigo que vale bem a pena ler. Aqui fica um excerto com a devida vénia:
“Or at least, we can learn something if we approach the matter with an empty cup. When we come to a climb without respect or an interest in learning, we see nothing but a goal to be achieved. In such a state, we might wish to skip to the end by any means, as a child who moves his piece to the final square of a board game and mistakes himself the winner. We might want to announce our accomplishment or log it on a scorecard, but what we have really learned cannot be verbalized or assigned a numerical value.”
Às vezes o caminho correcto pode mesmo ser simples e estar à nossa frente, as razões porque não o percorremos podem ser um pouco mais complicadas. SM
Ilustração: Victor Baptista
Talhar com martelo e cinzel! Estes são os piores, julgam-se artistas, fraudes de miguéis angelos com a tentação de aperfeiçoar a natureza! E burros! Hoje em dia com um berbequim talha-se que é uma maravilha e é rápido.
Agora fazer uma vénia mental… isso é muito oriental. Proponho antes o estilo moderno ocidental. Tomar a rocha por uma miúda que queremos engatar. Assim, ponho-lhe uma saia mental e digo-lhe “o que é que fazes logo à noite?”, cinco minutos de conversa mental, algum aquecimento musical e pumba, sem rodeios, tentar trepá-la até ao top. Vai buscar! mais um entalhe na coronha.
Provavelmente, se tivessem desenterrado um pouco mais no local do crime, talvez tivessem encontrado um berbequim, quem sabe. Ou então fica para a sequela.
A questão de vénia ou vestir a saia à rocha é deveras interessante, o respeito milenar oriental ou a javardisse sexista ocidental, a delicada cerimónia do chá ou a máscula caneca de café, a procura da aprendizagem com cada relação ou o simples somatório de conquistas. Um mundo de contradições, quase um choque civilizacional. É escolher os campos porque é quase impossível ter o melhor dos dois mundos.
Agora reduzir a importância dos preliminares a uma questão musical é deveras redutor, sabendo-se, hoje em dia, que um bom aquecimento é fundamental para evitar lesões.
Ora bem…não aos artistas da rocha, sim aos meios mecânicos eléctricos. Não às vénias, sim às saias. É um começo de discussão, pouco ortodoxo mas um começo.
Concordo que o entalhador, não artista, deve usar todos os meios ao seu dispor para melhorar o produto final. Vestir uma saia, mesmo mental, a um bloco parece-me pouco prático, embora já tenha assistido ao vivo e em filmes a beijos apaixonados à rocha e, se isso já vi, tudo pode acontecer.
@nortebouldering: Não sejas tão cândido… Recordo-te que o Império dos Sentidos ilustra bem como é possível ter o melhor dos dois mundos: javardice milenar oriental. E ilustra bem o cuidado que se deve ter com as vénias.
@FCS: Nada como uma boa investida pélvica no começo para partir para o encadeamento.
O Império dos Sentidos é uma via?
http://bit.ly/WJ8eIV
Muito engraçado. Mas, como se sabe, a Wikipédia não é uma fonte segura de informação e existem muito mais vias com esse nome do que filmes, ergo deve ser uma via.
As questões q o SM levanta em relação aos talhados são pertinentes… mas na minha opinião (q vale o q vale!) talhar é uma parvoice sem sentido! Sabe-se lá se não seria possivel escalar sem talhar determinada via? o “parvo” q talhou pode não ser forte o suficiente ou mesmo não estar a ver a forma de escalar a via sem a talhar. O q é impossivel para uns pode ser possivel para outros… 9b+ à pouco tempo era impossivel mas agora vemos o mutante Ondra já com dois 9b+ na bagagem e mt próximo de sacar 9a à vista!!!
Boa questão, esse é um dos principais argumentos contra os talhados, eis como Bill Ramsey o desmonta:
“Reason 3: Hold Manufacturing Harms Future Generations of Good Climbers
Another argument that initially seems plausible is a forward-looking argument about the future of the sport. Here, it is claimed that by manufacturing holds to make a route possible today, preparers are robbing future generations of currently inconceivable natural lines. Had today’s 5.15bs been “chipped down” to mere 5.14s, the Sharmas and Ondras of the world would now have nothing to project.
A number of considerations undermine this reasoning. First, in our description of acceptable manufacturing, we stipulated that proper modification only applies to truly unclimbable rock, such that no future climber could ever climb it. In discussions of this topic, there is a lot of fretting about discerning what is and isn’t unclimbable rock. Statements like “Who’s to say what is unclimbable?” and “No one really knows what will be possible in the future” are commonplace. Nonsense. While it is indeed true that people are climbing things today that were once described by some as unclimbable, it doesn’t follow that unclimbable rock is impossible to detect. Unless you are completely ignorant of physics and human physiology, it is easy to recognize sections of rock that will never be climbed in their current form. If you think it is impossible to recognize truly unclimbable rock, let’s make a deal. I’ll pick out a 20-foot section of rock on a cliff somewhere and declare it unclimbable. If, in the next 15 years, it is actually climbed in its current form, then I will pay you $10,000. If it is not climbed in that form, then you must pay me $10,000. Any takers?”
Quem dá mais, ou quem aposta com o Bill? É um ponto duvidoso este, não será assim tão fácil ver o que é impossivel ou não.Ou será?
Tema polémico… Depois de ler a desconstrução da argumentação anti-talhar, é difícil refutar a ideia de que talhar com consciência é aceitável. E se calhar, a posição politicamente (in)correcta é a mais aceitável. Mas numa actividade como esta, em que não há “entidades fiscalizadoras”, que não é verdadeiramente um desporto per se (vai para além disso), estabelecer uma linha limite tão ténue e subjectiva, que pode ser ultrapassada facilmente, é um risco elevado. Este argumento, na minha opinião é o que está menos bem contraposto pelo Bill Ramsey. Se é verdade que a adopção deste dogma não tem evitado a prática de talhar, não é menos verdade que não há forma de aferir se, apesar de não a evitar totalmente, a pressão inter-pares não evita que esta seja uma prática muito mais generalizada e recorrente.
Por outro lado, questiono-me se, na prática, este exercício não será o mesmo que filosofar sobre a lei do fora de jogo no futebol? É uma regra estúpida e sem sentido, mas é a essência do jogo. É óbvio que não há nenhuma lógica para que não se possa colocar um jogador “na mama” à beira do guarda-redes… mas esta regra faz toda a diferença na dinâmica do jogo. No fundo faz a diferença entre um jogo bem jogado e um jogo de recreio. Não deixa também de ser verdade, que as regras por vezes falham (em caso de dúvida, não se deve marcar o fora de jogo), i.e. as regras foram feitas para serem quebradas, muito de vez em quando, em casos excepcionais, em prol do jogo.
No fundo estas regras éticas de que tanto se falam (como os começos realmente sentados, o número de crashs, as presas de arranque…) são regras também elas regras arbitrárias e éticas. São também elas dogmas… como tal os dogmas também fazem parte da escalada e sem eles estariamos apenas a trepar cenas.
Relativamente a outra questão levantada, parece-me evidente que a implicação prática (e sublinho prática) de talhar um passo num problema de bloco é totalmente distinta de talhar um passo numa via de 300m. Numa perspectiva não ética, mas de dinâmica de jogo, para mim é de facto distinto talhar no bloco. Quanto mais não fosse, porque no bloco a escala de graduação parece ter estagnado… e isso é um factor a ter em conta (não que eu lhe ligue muito pessoalmente, mas entendo que tenha de existir), principalmente em áreas de bloco com muitos escaladores e/ou de classe mundial.
Dito isto, é de facto difícil contrariar os argumentação do Bill Ramsey (quanto mais não seja porque o senhor é filósofo, logo está uns passos largos à frente), mas pessoalmente não tendo uma ideia totalmente amadurecida sobre a questão, aplico uma regra de ouro quando limpo: mexo o menos possível.
Na verdade há muitas outras preocupações éticas bem mais importantes para mim, porque têm implicações para além da comunidade de escaladores. Por exemplo, a decisão de abrir uma zona de escalada parece-me bem mais relevante e por vezes é menos reflectida do que o acto de talhar. Mas estes são outros assuntos, e como tal não são chamados à baila nesta discussão.
Gostava ouvir outras opiniões sobre o tema, mais avalizadas, para formar a minha. E não me interessa se estão bem ou mal redigidas, à pressa ou com calma, gostava só de vê-las expostas. Mas enfim, o Mundo Perfeito, só em Corno de Bico… e é um V10… exposto.
PS – E que dizer da frase: “Ah, encadeaste? Com talhados ou sem talhados?”
Para filósofo, o Bill é muito terra-a-terra com as suas típicas contas americanas em dólares… Mas essa defesa de se poder talhar o impossível e de que isso não “encurta” as possibilidades dos escaladores do futuro tem um pequeno problema. Ok, a parede é lisa e falta uma presa, mas de que tamanho vou talhar e em que grau vou transformar esta linha? A resposta, na filosofia do Bill, devia ser só uma: mexer o mínimo possível, ou seja, neste momento, talhar para se deixar em 9c. Qualquer outro grau já não tem a desculpa de “ser o preço da evolução”…
mesmo assim existe outro problema… porque não talhar para ser um 10a ou 10b ou 10c?!!!
Na realidade deveria existir um dogma e talhar deveria ser um anátema. Porque não é assim, é mais, como alguém já referiu, uma questão antropológica, social e cultural do que filosófica. E essa será a razão porque a argumentação do filósofo Bill não é convincente.
O escalador socialmente e culturalmente pertence à Igreja da Escalada onde talhar é pecado e escalar em vias talhadas é desaconselhado para não incentivar os pecadores. O seu primeiro encadeamento foi o seu primeiro sacramento e a ida à falésia ao fim-de-semana a eucaristia dominical. Mas o pecado e a culpa são um peso, e as grilhetas dogmáticas atrofiam-lhe os passos e interferem na sua vontade e nas suas vontades. Confundindo vontade com liberdade, procura a emancipação. Escândalos e revelações de que vias naturais afinal eram manipuladas, parecem confirmar as suas convicções. Se os outros podem e fazem porque não ele. Quem nunca talhou que atire a primeira pedra.