Escalada 2084. XII Outubro Vermelho.

Escalada 2084 XII Outubro Vermelho.

No capítulo anterior: “Aristides”, o pombo, acompanha agora Sebastião para todo o lado. No fim da noite uma decisão impôs-se, abrindo-se uma porta num aparente beco sem saída.

 

Não foi difícil dar com o sítio. A morada, que tinha vindo na pata do pombo, batia certo.

A resposta havia tardado em chegar. Uma semana, que me pareceu um ano, havia passado. Sentia agora que todos os meus passos eram vigiados, como se tivesse acordado para uma realidade diferente. Hipersensível e a ressacar da droga do embrutecimento, todos os olhos eram câmaras e todas as câmaras tinham olhos inquisidores por trás. Na infinita espiral paranóica onde caíra, parecia sentir os impulsos eléctricos do chip a revelarem todos os meus passos para e os esbirros da DRAS. Falava sozinho, suava, descobria novos tiques todos os dias. Estava um farrapo. O Carlos desapareceu. Geralmente isso acontecia quando era chamado para treinos no exército, do qual era reservista. Sabíamos que geralmente em duas semanas estaria de volta. Mas agora perguntava-me se não teria sido apagado do mapa, o que só fazia aumentar a minha inquietação e alimentar negras conjecturas. Seria eu o próximo?

Num beco escuro numa zona suja da Baixa, uma montra estilhaçada estava tapada com posters, de modo a não se ver o interior. Em cima, uma placa dizia, escrito numa fonte a imitar caracteres cirílicos, Red OctoberTattoo.

Entrei. Ao bater a porta, um espanta espíritos com pequenos sinos anunciou a minha presença. A sala era escura, apenas iluminada por um candeeiro do género dos usados nas salas de operações. Debaixo da luz intensa estava uma cliente deitada de costas numa cadeira de barbeiro reclinada. Sobre ela, sentado num banco ridiculamente pequeno, estava um tipo gordo e careca com cara de mongol, sem um único pelo, excepto uma barbicha pontiaguda de mais de um palmo, espetada debaixo do queixo. Parecia imperturbável com a minha chegada. Já mais habituado à iluminação reparo que a um canto, sentado num banco corrido de madeira, está um velho chinês a fumar um cigarro. A silhueta escanzelada era pobremente dissimulada por um fato de trabalho cinzento. A cara, apagada e enrugada e também ela cinzenta, dava a sensação de todo ele ser feito de cinzas. 

Aproximei-me do tatuador. Estava concentrado a desenhar o que parecia ser o famoso quadro de Gerasimov, Lenine na tribuna, nas costas de uma mulher gorda adormecida. As tatuagens eram bem aceites e até encorajadas pela Comissão, estando na moda as cenas do realismo social soviético.

“Bonita tatuagem”, digo tentando quebrar o gelo, “as bandeiras em baixo vão ficar vermelhas?”

O homem continuou impávido o seu trabalho sem desviar a atenção da agulha laser.

“Com essas costinhas quase que dá para representar o quadro em tamanho real…” Nem sequer olhou para mim. A piada também não ajudara. Em desespero de causa resolvi dizer: “Rosebud”.

O tatuador continuou na mesma, mas o velho chinês, que parecia uma estátua de cera, levantou-se, apagou o cigarro no chão e fez-me sinal para o seguir. Fez-me passar por uma porta ridiculamente baixa, com fitas para as moscas, e entrar numa sala cheia de fumo, onde, ao centro, um grupo de velhos chineses jogava majong a dinheiro. Nem deram pela nossa passagem. Mais uma porta levou-nos a um quarto vazio e sem janelas. O velho ligou uma lanterna que trazia no bolso e abriu um alçapão dissimulado por um tapete, começou a descer dizendo: “Siga-me”.

“Hah! afinal alguém fala aqui.”

“As palavras são prata…o silêncio é de ouro…”, disse o chinês enquanto desaparecia na escuridão.

Segui-o pelas escadas que davam para uma cave escura e bafienta. O velho ligou uma luz. Não existe mais nada para além de uma cadeira de barbeiro, uma estranha máquina e uma banca com rodas com o que pareciam ser instrumentos de cirurgia.

“O seu amigo lá em cima não é nada simpático.”

“Tem de o desculpar, é surdo de nascença.”

“Hah…”

“Mas é um excelente tatuador, por falar nisso já escolheu que tatuagem quer…para disfarçar.”

“Tinha pensado num lagarto, sabe… como sou cidadão-atleta-escalador …”

“Parece apropriado, embora esteja um pouco fora de moda.”

“E o que é que estaria na moda, já agora, se tiver a delicadeza de elucidar-me.”

“Um coração selvagem, por exemplo…”

“Pois…acho que me fico pelo  lagarto, obrigado.”

“Deite-se aí e relaxe, que ele não tarda em descer”, e encostou-se a um canto a fumar.

“Vai doer?”

“A tattoo?”

“Não! A porra da mudança do chip!”

“A alegria tal como a dor não vêm por si, respondem ao chamado dos homens.”

“Isso é suposto ajudar-me?”

“Pareceu-me mais simpático do que dizer-lhe que não temos anestesia.”

Começava a ficar com suores frios. Por fim, o tatuador surdo chegou, calçou as luvas de borracha e pegou num bisturi, ficando especado à minha frente. O velho disse baixinho: “Vire-se”. Depois afastou-se um pouco e pareceu procurar qualquer coisa na banca de cirurgia. Quando voltou, entregou-me um tubo de PVC envolvido numa gaze.

“Morda isto.”

 

Na próxima semana será publicado um episódio duplo como décima terceira parte: Estranhas Entranhas. Obrigado. SM

Ilustração: Vitor Baptista

Escalada 2084. XI Aristides.

Escalada 2084. X Aves Raras.

Escalada 2084. IX Eterno Repouso.

Escalada 2084. VIII Banho de Sangue.

Escalada 2084. VII Erros Meus.

Escalada 2084. VI Shit Happens.

Escalada 2084. V O Império do Eu.

Escalada 2084. IV Rosebud.

Escalada 2084. III Le Plaisir.

Escalada 2084. II A Sombra de M. Giant.

Escalada 2084. I Chipados.

NBFolhetim. Escalada 2084. Um Drama Futurista. Introdução

2 Responses to Escalada 2084. XII Outubro Vermelho.

  1. Pedro Rodrigues diz:

    Este promete um próximo capítulo em grande… Está a ficar densa a história.
    Grande ilustração também, cada vez melhor conceptual e tecnicamente.

  2. VBaptista diz:

    obrigado Pedro. a historia é mt boa…

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