Escalada 2084. X Aves Raras.

Escalada 2084. X Aves Raras

 

No capítulo anterior: Um difícil interrogatório na sede da DRAS deixa Sebastião desnorteado a vaguear no antigo cemitério do Prado do Repouso. Um estranho vagabundo e uma mensagem na pata de um pombo colocam-no novamente no encalço de Rosebud.

“Taaac!” Os nós de uma mão pesada esmagaram-se com violência no tampo de uma mesa, enquanto uma carta foi despejada e uma voz gutural gritou: “Incha porco.”

“Taaacc!” Mais uma mão, pesada de anéis, bateu na mesa com violência saltando ao mesmo tempo um ás de trunfo. “’Dassss, d’onde é que saiu esse ás… Há aqui massete!” Uma mão fechou-se como uma tenaz numa garganta, cartas, fichas e cadeiras saltaram pelos ares. Cabeças, copos partidos, membros torcidos amontoaram-se numa amálgama turva, até que uma voz espessa, curtida a bagaço, se impôs: “Já chega caralho! Lá para fora!”, e os jogadores de sueca foram pontapeados com violência para fora do estabelecimento.

Este era o antro que se dava pelo nome de sede da União Columbófila Ocidente Vermelho. A Columbofilia era um desporto extremamente popular, especialmente desde que entrara dinheiro fresco chinês e fora criado um sofisticado sistema de apostas que seguia em tempo real cada largada.

Parecia ser a época alta. A um canto um grupo de indivíduos discutia apaixonadamente as virtudes de uma ave campeã. Ao centro, num conjunto de mesas, eminentes batoteiros jogavam ruidosamente à sueca sob o olhar guloso de amadores candidatos a trapaceiros. Uma vitrina, acolhendo centenas de taças e medalhas alinhadas com aprumo sob uma luz florescente tremelicante, compunha a sala, ocupando inteiramente uma das paredes laterais. Em frente ficava o bar. Uma barra e um conjunto de bancos corridos e, em cima, na parede, uma série de ecrãs gigantes a seguir as largadas em tempo real.

Dirigi-me ao balcão e, ao sentar-me, um cheiro intenso a bagaço esbofeteou-me com violência, quase me fazendo saltar os olhos das órbitas. O “Barman”, o tipo que tinha posto na ordem os jogadores desordeiros, era um daqueles homens maciços de criação minhota, com mais de cem quilos e não mais de um metro e cinquenta de altura, pescoço inexistente e uma cara redonda  injectada de milhares de pequenos capilares sanguíneos, o que lhe conferia um ar de bomba relógio prestes a rebentar.

Olhou-me com desprezo e soltou metálica e guturalmente: “Qu’é que vai ser?”

“Uma cerveja”, disse acanhado. Preparei-me para acender um cigarro e ao fazê-lo reparei que o cepo olhava para mim de olhos esbugalhados. Olho para ele interrogativamente.

Escarrou ruidosamente para o chão e disse: “Não se pode fumar aqui, oh camóne.”

“Desculpe?”

“Não se pode f-u-m-a-r.”

“Porquê?”, era a primeira vez que me acontecia tal coisa, era permitido fumar em todo o lado até nos hospitais e maternidades.

“Por causa dos animais, faz-lhes mal.”

“Mas aqueles ali estão a fumar”, apontei para um grupo que a um canto admirava um borracho emplumado numa gaiola.

Olhou-me directamente nos olhos: “Aqueles são sócios.”

Esmaguei o meu cigarro no chão e resolvi ficar calado. O homem serviu-me com mau humor. Ao cabo de uma hora já estava farto de ali estar e resolvi fazer uma pergunta à besta: “A palavra Rosebud diz-lhe alguma coisa?”

Inicialmente pareceu desconfiado, depois levou uma mão ao avental sebento e colocou algo no balcão com a mão por cima. Coloquei a minha mão em cima da barra e ele passou-me uma chave discretamente, fazendo um sinal na direcção da casa de banho.

Entrei na minúscula e estranhamente asseada casa de banho e rapidamente notei uma quase imperceptível porta lateral. A chave servia. Abri a porta. Esta dava acesso a uma estreita e decrépita escada metálica em caracol. Subi com cuidado e abri mais uma porta, antes não o tivesse feito, um bafo intenso a excremento de pombo misturado com poeira de penugens atingiu-me em cheio quase me fazendo vomitar. Entrei no que parecia ser um pombal dentro de um sótão obscuro. Estreitos e labirínticos corredores, cheios de gaiolas até ao tecto, dominavam o espaço onde reinava um estranho silêncio, só entrecortado pelo sussurrar ritmado das aves.

Da penumbra, ao fundo, saiu uma voz rouca: “ Seja bem vindo Sr. Sebastião, ao meu humilde pombal.”

“Sabe o meu nome?”, disse caminhando na direcção da voz.

“Sabemos tudo o que é necessário sobre si.”

“Hoje, tenho a sensação que toda a gente sabe tudo sobre mim, que dia…”, disse tentando  aproximar-me um pouco mais.

“Deixe-se estar aí onde está, estamos bem assim”, disse a voz na sombra.

“Que é que vocês sabem sobre Rosebud?”

“Tudo…e nada.”

“Como assim?”

“Temos uma proposta para si, se aceitar saberá tudo, se não aceitar não saberá nada, a decisão será sua, o que nestes dias se pode considerar um luxo.”

“Que proposta? Quem são vocês?”

“Nós somos os únicos que o podem ajudar neste momento, pois o seu futuro não se afigura, por assim dizer, auspicioso… nem mesmo longo… somos conhecidos por BMV, já ouviu falar de nós com certeza.”

Fiquei aterrado, estava em presença das Brigadas do  Marxismo Verdadeiro, o braço armado de um partido marxista revolucionário clandestino que lutava pela restauração daquilo que consideravam como o verdadeiro Marxismo, que segundo eles teria sido desvirtuado pela Comissão a partir da revolução de 2040.

“Não quero saber disso, já me chega o Marxismo que tenho de aturar todos os dias no trabalho, em casa, na rua, na casa de banho, debaixo do tapete…”

“Muito engraçado, mas o verdadeiro Marxismo nunca chegou a ser conhecido na Eurásia, tem noção disso, não tem? Os porcos reacionários da Comissão apropriaram-se dos ideais originais  do grande movimento da Ditadura dos Indignados criando aos poucos um governo despótico com tendências totalitárias que foram impregnando de capitalismo selvagem ao estilo chinês. Do Comunismo só sobrou a iconografia, como à Igreja Católica só sobravam os santos pouco antes da extinção”, e escarrou para o chão ao dizer Igreja Católica.

“E vocês querem começar tudo de novo…mais sangue e destruição…”

“Nada pode travar a o processo histórico em curso, quando pensamos que a hidra do Capitalismo está morta ela nasce sobre outras formas e feitios, criando desigualdades e miséria sem cessar, favorecendo uns e desfavorecendo a larga maioria.”

“Em tempos, o comunismo tocou-me o coração, mas as utopias não nos conduziram por bom caminho até aqui. Hoje, só o presente me interessa e a única ideologia em que acredito é a que me salva as costas de uma bordoada certeira.”

“Não pode deixar de acreditar camarada, é uma luta contínua, que veio e vai muito para além das nossas vidas, está para além de nós, nós somos apenas vectores… mas não o chamei aqui para lhe vender um ideal. Você está marcado pela DRAS, o que aliás com certeza já sabe, e não tardará a desaparecer, varrido sabe-se lá para onde…fez demasiadas perguntas…”

“Sim, sei disso…”, disso baixinho, “sei bem disso, não precisei de vir aqui para ter essa certeza.”

“Dentro de duas semanas vai partir um barco do Porto de Leixões, que lhe pode abrir um novo futuro, uma oportunidade para começar de novo, mas não pode fazer perguntas, é pegar ou largar, tem uma semana para decidir…leve este pombo e quando tomar a sua decisão basta escrever “sim”, colocar a mensagem na pata e soltar o bicho, ele se encarregará do resto”, e da sombra saiu uma gaiola com um pombo.

 

Na próxima semana será publicada a décima primeira parte: Aristides. Obrigado. SM

Ilustração: Vitor Baptista

Escalada 2084. IX Eterno Repouso.

Escalada 2084. VIII Banho de Sangue.

Escalada 2084. VII Erros Meus.

Escalada 2084. VI Shit Happens.

Escalada 2084. V O Império do Eu.

Escalada 2084. IV Rosebud.

Escalada 2084. III Le Plaisir.

Escalada 2084. II A Sombra de M. Giant.

Escalada 2084. I Chipados.

NBFolhetim. Escalada 2084. Um Drama Futurista. Introdução

2 Responses to Escalada 2084. X Aves Raras.

  1. José Abreu diz:

    Grande historia, já profetizavam os grandes ilustres da escalada no inicio do século XXI que os pombos seriam a salvação.

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