No capítulo anterior: Um dia de Bloco na Pedra da Foice passa uma factura pesada de dedos sangrentos e músculos doridos. Uma mensagem de última hora aviva um fogo que arde sem se ver.
Seis da manhã. Arrastei-me a custo para fora da cama, doíam-me músculos que desconhecia existirem. O Bloco definitivamente não era para meninos. À minha espera já estava, sinistramente especado, o cliente seguinte. Sem sequer esperar que a cama arrefecesse, o meu companheiro de partilha de cama deitou-se e adormeceu imediatamente exausto.
Ficava sempre momentaneamente incrédulo com aquela situação, como se o filme da minha vida parasse naquele segundo para me castigar. Depois reiniciava-se outra vez e a vassoura da razão varria o momento para debaixo do tapete do inconcebível, empurrando-me, com um safanão, para a frente, para longe da demência.
Era assim em todo aquele edifício de quartos para trabalhadores solteiros da fábrica de tofu. Longos corredores com quartos de cada lado, em cada quarto duas camas, em cada cama três pessoas a dormir por turnos.
Dirigi-me para a saída e mesmo em frente ao pórtico de entrada estava uma viatura parada com dois tipos encostados a fumar. Não enganavam ninguém. Estranhei a DRAS estar ali aquela hora, mas nada era surpreendente vindo daqueles senhores. Deviam estar ali para apanhar algum degenerado. Aliás, não existiam surpresas, apenas incertezas, esperávamos tudo sem ter a certeza de nada.
Quando passei perto deles, apagaram os cigarros e dirigiram-se a mim: “Bom dia.”
“Bom dia“, disse interrogativamente.
“Gostaríamos que nos acompanhasse, se não for muita maçada.” Não fiz mais perguntas, não se recusava um convite da DRAS e não havia para onde fugir também.
A grande fábrica de tofu, com os seus complexos habitacionais, ficava nos arredores do Porto, mais precisamente numa zona que fora conhecida como a Zona Industrial da Maia. Não fazia ideia para onde me levavam. Na parte de trás da viatura foram desfilando diante mim os inenarráveis subúrbios do Porto, até que entrámos na cidade pela zona de Campanhã. Subimos a Rua do Heroísmo e, para minha surpresa, parámos diante do antigo Museu Militar. Uma entrada de garagem, de construção recente, dava acesso a uma ampla cave que parecia recente também. De antigo, o edifício só mantinha a fachada.
Estava atónito, não consegui deixar de exclamar: “A vossa sede é aqui?”
“Porquê a surpresa?”, disse um dos agentes preparando-se para sair da viatura, “a morada está em qualquer dispositivo, é pública.”
“Esta…era…era…”, resolvi ficar calado, depois não resisti, “…era a sede de uma antiga polícia.”
“Não, isto era o Museu Militar, deve estar enganado”, e saiu da viatura para me abrir a porta.
Levaram-me para uma espartana sala sem janelas, profusamente iluminada por uma luz branca fluorescente, tendo apenas como mobiliário uma mesa e duas cadeiras.
“Sente-se aqui”, disse secamente o agente, arrastando uma das cadeiras e saindo em seguida.
Devo ter esperado mais de uma hora, ora contorcendo-me na dura cadeira, ora andando às voltas na sala. Uma porta abriu-se e entrou um tipo sorridente com um dispositivo na mão.
“Posso saber porque estou aqui?”, atirei exasperado.
“Bom dia, para o senhor também…”, respondeu com um sorriso desconcertante.
“Bom dia, será que me podiam dizer porque estou nesta sala, na antiga sede da PIDE?”
“PIDE? Não. Museu Militar…”
“É no mínimo bizarra esta vossa localização, ou então uma ironia do destino…”, murmurei.
“As instalações do antigo Museu Militar eram as mais adequadas para a nossa missão”, disse de forma extremamente polida, enquanto puxava da cadeira para se sentar. “Mas deixemos a aula de História e passemos ao presente, que é disso que nos ocupamos e é disso que todos nos devíamos ocupar.” Esta última afirmação foi acompanhada por um olhar gelado.
“Muito bem, posso saber porque estou aqui?”, voltei a insistir.
“Se eu responder a isso ficaria a saber tanto como nós, e… isso como compreenderá… não pode ser”, disse o agente, novamente com um sorriso a bailar-lhe no rosto, enquanto puxava de um maço de tabaco. “Deixe-me oferecer-lhe um cigarro ou talvez…prefira A64?”
”Um cigarro está bem, nunca se sabe se não será o último…”
“Não seja melodramático. “ Acendeu ele próprio um cigarro, e de seguida atirou-me o maço e um velho isqueiro Zippo a deslizar pela mesa de fórmica.
“Posso saber porque estou preso?”, digo acendendo o cigarro e deixando o isqueiro acesso um pouco mais tempo do que o necessário. Por breves instante o característico cheiro a gasolina invadiu a sala, adorava aquele cheiro, era uma pena estes isqueiros serem muito difíceis de arranjar.
“Você não está preso, se estivesse preso não estaria aqui… para aqui só trazemos…convidados”, respondeu expelindo uma baforada.
“Então porque me obrigaram a entrar no carro?”
“Gostamos de tratar bem os nossos convidados, providenciar o seu transporte faz parte dos pequenos mimos que gostamos de proporcionar.”
“Então, depreendo das suas palavras que posso sair?”
“Isso seria falta de educação da sua parte.” Parou de sorrir e a sua cara adquiriu um tom cinzento de rato ao preparar-se para falar: “Espero que já tenha feito todas as perguntas que deseja, porque a inversão de papéis não é muito bem tolerada neste…digamos assim…palco.”
“Um palco…sim de facto tudo não passa de um palco.”
“Vejo que conhecemos o nosso Shakespeare, mas infelizmente não estamos aqui para uma tertúlia literária”, disse o agente apagando o cigarro no chão. “Rosebud, o que me tem a dizer sobre Rosebud?” Atirou à queima roupa.
“Era o trenó do Kane… no filme…conhece…o Citizen Kane…”
“O quê?”, quase deu um salto da cadeira, mas imediatamente recuperou a compostura: “Caríssimo, nós sabemos tudo, porque andou a pesquisar essa palavra nos motores de busca?”
“Gosto de cinema, só isso, e Rosebud é um famoso enigma do Citizen Kane, há quem diga que significa a infância perdida, o intangível imaterial…”
“Hum…intangível imaterial…muito bem. Você esteve no velhinho Estádio do Dragão, no último nono?”
“Sim…para além de cinema gosto muito de fado também, mas isso vocês já sabem, o chip não mente.”
“Pois sim…fado…mas porque insistiu em ir falar com LG?”
“Pretendia um autógrafo e como tinha estado presente no local onde MG tinha morrido, resolvi aproveitar-me disso para chegar até ela.”
“Foi um autógrafo muito demorado…esteve lá dentro mais de meia-hora.”
“Não sabia que podia constituir um crime pedir um autógrafo demorado.”
“Caríssimo, não se arme em esperto…nada é crime para nós… no entanto tudo o que um cidadão faz pode ser potencialmente criminoso.”
“Como assim?”
“Só a nós cabe determinar o que é crime ou não, é um fardo eu sei, mas o esqueleto do estado assenta sempre na eficiência da sua segurança interna…”
“Folgo em saber.”
“Muito bem!”, cortou o agente rispidamente, “Penso que por hoje é tudo, pode ir, infelizmente não podemos providenciar o seu transporte de volta.”
“Não há problema, gosto de andar a pé.”
As minhas respostas pareciam satisfazer as necessidades imediatas da DRAS, mas a verdade é que sabia pouco mais do que eles. Tinham-me deixado ir porque na realidade, actualmente, não havia muita diferença entre estar preso ou andar cá fora. Mas estava marcado, não me largariam mais enquanto não chegassem ao fundo da questão.
Saí do edifício antigo por uma porta lateral que dava acesso a uma pequeno jardim, um vento gelado fustigou-me a cara. Procurei o gorro no bolso do casaco. Aquele vento frio contrastava deliciosamente com o ar da sala bafienta e fazia-me sentir vivo e livre, nem que fosse por breves momentos. As temperaturas estavam estupidamente baixas para Abril. O “Aquecimento Global” tinha sido substituído no chavão alarmista científico por “Arrefecimento Global” e havia mesmo quem, num excesso de zelo, falasse em “Mini Ice Age”, levando a que os mais loucos recomendassem mesmo uma retirada ordeira para sul.
Coloquei os auriculares sem fios debaixo do gorro e escolhi no dispositivo a música que LG havia mandado. Aos primeiros acordes de “Erros meus” comecei a caminhar sem sentido, apenas para não ficar ali parado meio atordoado. Um portão de ferro com uma inscrição detém-me. Em cima lia-se: “ Necrópole do Porto, Museu de Arte Funerária e Tanatório”. Nunca ali havia estado. Desde que a cremação passara a ser a prática institucional obrigatória, os cemitérios tradicionais haviam deixado de existir. No local do antigo cemitério do Prado do Repouso, agora funcionava o grande forno crematório da cidade, com as suas sinistras chaminés sempre a fumegarem. Mas num acesso de cinismo tinham resolvido deixar a zona próxima à Rua do Heroísmo no estado original, como museu histórico sobre a arte e costumes funerários. Parecia ser um tremendo sucesso entre os turistas asiáticos e afins.
Resolvi entrar. Comecei a descer uma longa e estreita avenida ladeada de ciprestes. Reinava uma estranha calma neste lugar que me fez desligar a música. Não fosse o zumbido omnipresente do forno crematório a trabalhar e o silêncio seria perfeito ou, mais adequadamente, sepulcral. Gatos passeavam-se, cuidadosos, entre as campas como se soubessem de antemão o que podiam ou não podiam pisar. Um sinistro mausoléu com a estátua em tamanho real de um cão a uivar, fez-me gelar e estugar o passo instintivamente.
Quase no fim da avenida, encostado às grades do bizarro jazigo Baquet, estava sentado um homem andrajoso e descalço, afagando um pombo nas mãos, enquanto lhe sussurrava algo baixinho ou pelo menos parecia sussurrar. Olhou para mim estranhamente, como se me conhecesse. Desviei o olhar, com incómodo, e segui o meu caminho, quando subitamente atrás de mim ouvi: “Rosebud.”
Virei-me imediatamente, mas o homem já havia desaparecido, ficando no seu lugar apenas o pombo a debicar no chão. Aproximei-me. Havia algo estranho no pombo. Com infinito cuidado consegui agarrá-lo e retirar-lhe uma cápsula da pata. Dentro estava uma mensagem escrita à mão. Dizia: “Hoje, 21h00m, União Columbófila Ocidente Vermelho”.
Na próxima semana será publicada a décima parte: Aves Raras. Obrigado. SM
Ilustração: Vitor Baptista
Escalada 2084. VIII Banho de Sangue.
Escalada 2084. VII Erros Meus.
Escalada 2084. VI Shit Happens.
Escalada 2084. V O Império do Eu.
Escalada 2084. III Le Plaisir.
Hummm, intriga fulminante! Gosto. A espera de um novo capítulo parece agora infindável… Rendo-me.
Muito boa a ilustração…
Obrigado Pedro. Os textos é que puxam por mim. Parabéns ao Sérgio!. ab
Cada vez melhor. Parabéns.
Obrigado a todos, por acompanharem.