No capítulo anterior: Chove sem parar na Invicta. Um Concerto de LG no velhinho Estádio do Dragão. Uma longa conversa nos bastidores revela-se auspiciosa…
Uma minúscula viatura sulcava a madrugada a toda a velocidade. Dentro, a confusão era total. Uma amálgama de pernas, braços, pescoços torcidos, mochilas, crashs insufláveis gigantes, grandes paus com escovas de aço, pulverizadores de musgo e grandes sacos com comida, que na realidade apenas continham sandes de tofu, uma cortesia empresarial.
“Merda! Podias ter alugado um carro mais pequeno!”, exclamei sem me poder virar, pois tinha a cabeça entalada entre uma mochila e dois paus que surgiam ameaçadores da bagageira.
“Para a próxima pagas e eu alugo um autocarro, para poderes viajar com todo o conforto e fazeres o teu soninho de beleza”, cuspiu-me Jaime ao ouvido, dando uma guinada, que me pareceu propositada, no volante.
“Cuidado com as curvas, cabrão! Se não morremos aqui atrás!”, guincharam das traseiras.
“Vou por música para vos calar”, disse Jaime sincronizando o seu dispositivo com o sistema de som da viatura. Começou a ouvir-se o prelúdio das Variações Goldberg.
“Por favor…”, disse eu, “… não estamos na linha de embalagem.”
“Se serve para embalar tofu, também serve para a estrada, ajuda-me a concentrar e assim vamos mais depressa.”
“Eu escolho a música!”, gritou Guilherme das catacumbas da bagageira.
“Está bem, está bem”, rendeu-se Jaime.
“Mete Nirvana”, disse eu.
“Nirvana? Isso é mais antigo do que Bach”, uivou Tomás. “O dono-do-Muralha arranjou-me isto”, e começaram a ouvir-se os acordes melosos de música neo-new-age.
“Mand’o foder, mais a sua música de paneleiros!”, berrou Jaime.
“ É suposto pôr-te em contacto com o teu eu interior e com isso sintonizar-te com as energias perdidas do Universo”, disse Tomás num tom sério.
“Então é por isso que o gajo tem aquela trança na careca, para o ligar às energias perdidas, bem me parecia que devia servir para alguma coisa”, disse eu.
“Precisamente.”
“Isto é bom para um elevador, ou então para enganares alguma miúda. Fodei-vos!”, disse Jaime e meteu Ziggy Stardust.
“Fodei-vos?”
“Iá, disseram-me que era assim que se diz em Trás-os-Montes, Fodei-vos!”, e começou a cantarolar, “Oh…Oooh… yeah…Ah…Ziggy played guitar, jamming good with weird and gilly…And the spiders from mars…”
Passadas umas horas, lá chegamos à Pedra da Foice. Estacionámos. Insuflámos as crashs e fomos até ao primeiro sector, passando pelo pórtico. No Bloco, a acreditação de pontos e homologação de encadeamentos funcionava de forma um pouco diferente da escalada desportiva, devido à ausência de material fixo. Era necessário montar um dos dispositivos num tripé a filmar. Depois as imagens eram submetidas a um programa que com reconhecimento facial e análise ética incorporada homologava o encadeamento, tudo em tempo real, uma questão de segundos e os pontinhos estavam na carteira. Qualquer falha, um começo sentado mal executado, um toque numa pedra ou árvore, uma saída diferente e o problema não era validado.
De resto, a pontuação era idêntica à escalada e tal como na escalada desportiva existia a compensação biométrica, conforme a configuração das presas e distância entre elas, distância ao solo nos começos sentados, etc., determinava-se um factor biométrico que era inserido na pontuação, descontando pontos ou acrescentando, conforme a biometria de cada escalador. Nada era deixado ao acaso, a subjectividade já não existia há muito tempo. Para muitos era quase uma questão de justiça histórica, louvavam o sistema maquinal e perfeito que colocara um fim a anos e anos de discussões de grau e sibilinas acusações de fraude entre os escaladores. Para outros, muito poucos, já não era escalada, era outra coisa qualquer, ao eliminar-se a subjectividade e a fé simples no próximo. O materialismo ideológico também tomara conta da escalada como de tudo o resto, a sensação era agora uma equação, a dúvida uma certeza, a exaltação um número e o movimento uma geometria. A escalada fundira-se no seu próprio elemento: a rocha, tornando-se mais amorfa que o próprio mineral.
Tentava-se, à vez, um bloco perdido no meio do nada, uma proa perfeita em cima de uma laje granítica. Um começo sentado com um calcanhar alto levava a um movimento largo para palmar às cegas um áplate em oposição. O movimento não saía e dávamos tiros sucessivos, fazendo do bloco um carrossel. O Carlos sentou-se preparou-se para lançar. Um movimento rápido, uma palmada e….um grito horrível irrompe no silêncio da montanha: “Aiiiiiiiiiiiii!”
“Merda! Eu bem tinha dito que não tinha pele”, disse agarrando o dedo sangrento, “puta que pariu estes cristais de merda.”
“Sai que estás cansado!”, berrou Guilherme saltando para a crash. Posicionou-se nas presas, contorceu-se, arquejou, estremeceu da cabeça aos pés, a cabeça pareceu que ia explodir de tão vermelha, mas o rabo não levantou um milímetro do chão. “Isto… do bloco é complicado”, disse saindo de fininho de cena.
Como nos tectos não dava, tentámos a nossa sorte numa placa.
“Uhhh… que técnico, não se vê uma única presa!”
“Parece um muro coberto com vidro partido!”
“Tenho treinado técnica no muro, vai sair-me fácil”, disse Tomás montando a crash e preparando-se para subir. Um passo, dois passos e tudo parecia estar a correr bem. De repente, um pé resvala e como estava todo esticado como um acordeão cai a raspar a cara pela placa abaixo.
“Ui! Já fizeste a barba!”
“Merda!”, queixou-se Tomás caído na crash e agarrado à bochecha esfolada e sangrenta.
“Esta placa resolve-se com uma entrada a correr”, disse Guilherme, “saiam da frente.” Ganhou balanço e começou a correr em direcção ao bloco, com um salto apoiou um pé na crash, mas ao apoiar-se no bloco com o outro resvalou indo de cabeça contra o calhau, por segundos ficou KO estatelado nas crashs. “Ai, Ai…devia ter ficado a trabalhar na fábrica”, disse arrastando-se para fora agarrado à cabeça, com o sangue já a escorrer-lhe entre os dedos.
“Toma lá ó…Carl Lewis”, disse Jaime sem se conter e atirando-lhe um estojo de primeiros socorros para as mãos.
“Qual é o nome desta placa de merda?!?”, guinchou Guilherme enquanto se preparava para enfaixar a cabeça.
“Galo na testa…”, disse Jaime a contorcer-se de riso.
“Vai-te foder! isso é uma via de Vale de Mao…”
Mudámos mais ma vez de bloco. Desta vez tínhamos pela frente um highball com um começo sentado ridículo. Preparámos tudo e o Jaime fez-se ao grande. Executou os movimentos com grande mestria, hesitou longamente na saída, mas empolgado com os gritos de incentivo arriscou e saiu vitorioso.
Quando apareceu, vindo do outro lado do bloco, era todo sorrisos, que rapidamente se desfizeram em raiva quando consultou o dispositivo: “Filhos da puta não me deram a pontuação toda!”
“Pois não, não fizeste o começo sentado.”
“Como assim”, disse desconfiado, “tenho a certeza que comecei nas presas certas.”
“Mas agachaste-te em vez de te sentares, pensei que a esta altura do campeonato já soubesses o que andas a fazer, sinceramente pensei que quisesses fazer assim o bloco para facilitar.”
Ficou a remoer a um canto vendo vezes sem conta as imagens do bloco no dispositivo e a vociferar palavrões entre dentes.
Resolvi dar um pegue ao bloco também. Uma blocagem baixa leva-me a uma lateral de aspecto duvidoso, “Está sólida?”, gritei para o Jaime. “Vai-te foder”, foi a resposta. Zangado agarro a presa com ganância e puxo ao máximo para ir directo ao topo do bloco, quando já sentia o áplate de saída a presa explodiu-me na mão mandando-me num voo, sem pára-quedas, para o soalho. “Merda de broa de milho!”, chorei agarrado a dois dedos sangrentos.
A meio do dia, estávamos todos estendidos ao sol no Pátio Vermelho, que hoje fazia jus ao nome tal era a quantidade de mãos sangrentas, dedos “bifentos”, cabeças partidas e bochechas esfoladas que ali se juntaram. Uns ligavam os dedos com adesivo, como se fossem múmias, outros comiam qualquer coisa e havia mesmo quem estivesse já estendido ao sol a dormir, peguei num caderno e tentei praticar um pouco de caligrafia e desenho manual.
“O que é isso?”, perguntou o Tomás enquanto enrolava um charro, não sem alguma dificuldade, com os dedos enfaixados de adesivo.
“É um caderno Moleskine.”
“Man… isso é mesmo retro!”, disse falando pelo nariz enquanto expelia uma baforada. “Para que serve?”
“Merda! Serve para escrever, o que é que achas?”
“Mas já ninguém escreve à mão, porque não ditas para o dispositivo.”
“É um desperdício de árvores, é o que isso é!”, disse Carlos despregando um olho e juntando-se à conversa.
“De qualquer forma, onde aprendeste a escrever à mão, há muito que não ensinam isso?”
“Acho que é proibido”, voltou Carlos espreguiçando-se, “se não é, devia ser. Uma pessoa não pode ser responsável pelo assassínio de árvores inocentes.”
“Fiz um curso, pronto, tinha curiosidade e resolvi aprender, é super lento, mas sabe bem, sinto-me mais humano, seja lá o que isso for.”
“Sim, seja lá o que isso for…”, e Carlos voltou a fechar os olhos.
“Ser humano não tem nada a ver com escrever à mão”, irritou-se Jaime, “Isso é apenas para maricas revivalistas pseudo-intelectuais.”
“Enganaste…as miúdas gramam…”, isto pareceu fazer acordar o resto do grupo do torpor.
“A sério?!?”, disseram em coro Guilherme e Tomás.
“Iá…chama a atenção e dá um aspecto romântico, tem funcionado…é melhor e dá menos trabalho que andar com um cão pela trela ou com um bebé ao colo…”
“Ah!… és fodido.”
“Não conheço nenhuma camarada que caia nesse género de esparrelas anacrónicas, o amor romântico não deveria ter cabimento numa sociedade evoluída pós-moderna e especialmente desde que o sexo deixou de ser essencial para a reprodução deveria ser severamente restringido”, resmungou Carlos, que entretanto se levantara e andava de um lado para o outro efervescente, como sempre que a conversa chegava à política.
“Essas gajas que tu conheces são piores que as Freiras de Mao, são umas chatas, só se excitam com citações do pequeno livro vermelho, uma seca”, interrompeu Guilherme.
“Antes havia uma expressão que se te podia aplicar bem, ser mais papista que o Papa, ou se quiseres traduzindo para os tempos modernos, ser mais maoísta que Mao. Há coisas em que a mão alheia da política não se deve meter e o sexo é uma delas…”
“A mão da Comissão chega a todo o lado…”
“Só se for para apertar os tomates dos cidadãos…”, explodiu Jaime a rir.
Um beep no dispositivo desviou a minha atenção. Uma mensagem de LG: “Mando-te uma versão inédita do “Erros meus”, gravada ao vivo ontem à noite, acho que a minha melhor de sempre, para um fã de Camões e Amália…” Respondi imediatamente. “E agora de L. Giant…”
As dores nos dedos sangrentos, como que por magia desapareceram. A anestesia pode vir por várias formas e feitios…
Na próxima semana será publicada a nona parte: Eterno Repouso. Obrigado. SM
Ilustração: Vitor Baptista
Escalada 2084. VII Erros Meus.
Escalada 2084. VI Shit Happens.
Escalada 2084. V O Império do Eu.
Escalada 2084. III Le Plaisir.
Estão a ficar famosos 🙂 já viram o vosso video na Desnivel online http://desnivel.com/bulder/galeria-multimedia/video-albarracin-roofless
Abraço
João Animado