No capítulo anterior: Uma vigília em honra de MG e um discurso demasiado longo quase goram as perspectivas de uma sessão de treino no Muralha. O velhinho Estádio do Dragão será o palco do primeiro concerto da fadista L. Giant após a morte do seu marido.
Chovia há nove dias sem parar. A água escorria das caleiras, das paredes, das ruas, das caras, das almas, das pessoas. Despia a cidade escura, mostrando-a como veio ao mundo. Se existiu um Génesis para as cidades, o Porto foi criado cinzento, escuro e triste. Devia estar a chover nesse dia, muito. A seguir, o monstro criador, talvez com remorsos, deu-lhe entranhas de granito e da mesma massa fez os seus habitantes, condenando-os a serem eternos sobreviventes. Em 2084 chovia como sempre choveu, mas a cidade parecia escorrer sangue, em vez de água. A ditadura da Comissão servia-lhe como um fato demasiado justo, um incómodo latente que a fazia arrastar-se no passo de um condenado com grilhetas.
Saí do Muralha já atrasado e corri para a estação sob a chuva cerrada. O que em tempos seria um dilúvio, era agora classificado como um fenómeno meteorológico de classe três. O verme deixou-me mesmo à porta do velhinho Estádio do Dragão, onde o concerto de LG havia já começado.
Dei a volta ao recinto, fintando os candongueiros que me tentavam impingir entradas de ultima hora, e aproximei-me da grande porta de entrada de autocarros e camiões que estava cercada de grades.
Era suposto encontrar-me com um amigo de um amigo que era roupeiro da equipa de futebol, para me arranjar um livre-trânsito com acesso aos bastidores. Aproximei-me das grades, não sem dificuldade, e vi um sujeito da parte de dentro a andar de um lado para o outro, que conferia com a descrição. Fiz um sinal com a cabeça e ele aproximou-se. Estava furioso.
“Como é caralho? Se não fosses amigo de quem és, ficavas aí à chuva.”
“Desculpe, desculpe… o trânsito na VCI está um pandemónio.”
“VCI o caralho! Em vez de estares em casa a bater uma, para a próxima chegas a horas! Tem de estar aqui um gajo de pernas abertas para estes filhos da puta!”
Fiquei vermelho como um pimento, balbuciei mais umas desculpas e lá entrei. À primeira oportunidade livrei-me do chato. Cheguei ao relvado e o silêncio era impressionante. No palco, L. Giant erguia-se sozinha, toda de negro e de olhos fechados. Saíra propositadamente da zona coberta e a água escorria-lhe pelo corpo. Imperturbável, como um pilar negro no meio do nada. Com um gesto de mão mandou afastar alguém que se aproximou a correr com um guarda-chuva, virou-se para trás e fez sinal aos guitarristas.
As guitarras portuguesas arrancaram e, sem aviso, uma voz portentosa elevou-se no ar, “Erros meus, má fortuna, amor ardente…”. Fiquei esmagado, a voz envolveu tudo, sobrepôs-se a tudo, “Em minha perdição se conjuraram…”. Bebi aquelas palavras como a chuva que caía do céu, nunca aquele soneto de Camões me soara assim, era como se uma luz iluminasse os versos, fazendo-os brilhar como fogo. Cantaria sempre assim, ou estaria transtornada com a perda de MG. Afinal parecia existir ainda uma alma em Portugal, um núcleo ainda não corroído, algo indestrutível e inexplicável e, por momentos, atrevia-me a pensar: divino.
O concerto continuou, ardendo como uma fogueira na noite escura. No final e graças ao meu livre-trânsito consegui acercar-me dos bastidores.
A porta do camarim de LG era guardada por um tipo que parecia ter cento e cinquenta quilos, era de tal forma grande e largo que escondia a própria porta. O corrupio era intenso. Assistentes carregados com grandes ramos de flores, circulavam com ar solícito. Criados austeros empurravam carrinhos carregados de toalhas e fruta fresca. Um chef, famoso pelo seu sushi sintético, passou empurrando o que parecia ser uma banca de cozinha com rodas. Políticos engravatados discutiam as virtudes do novo fado com desgrenhados músicos da velha guarda. Bandos de adolescentes cobertos de piercings e com boinas à Che teclavam frenéticos em dispositivos coloridos. Um capitão-de-fragata em farda de gala conversava com uma opulenta ministra de Mar e Terra. Irados intelectuais marxistas de fartos bigodes zangavam-se com revolucionários maoístas de trazer por casa. Sentia-me deslocado ali, a minha cabeça rapada e ar lívido não desmentiam a minha condição de trabalhador das fábricas de tofu, mas mesmo assim decidi avançar.
“O que é que você quer?”
“Preciso…de dar uma palavra a LG.”
“Eu não o conheço, e se eu não o conheço quer dizer que miss L. também não o conhece, o que cria um impasse chato… para si pelo menos.”
“Podia transmitir a miss L. que eu estava presente no local onde M.Giant morreu?”, isto pareceu fazer arrebitar as orelhas do monte de banhas.
“Um momento.” Escreveu algo no dispositivo e passado uns segundos levou o dedo ao auricular para ouvir melhor. “Está com sorte, pode passar”, e deslocou-se para o lado com a graciosidade de uma porta de correr.
Entrei, LG estava sentada ao fundo, numa cadeira em frente à mesa de caracterização, vestia um roupão de turco negro e tinha os cabelos ainda molhados. Não era um cliché dizer que ao vivo era extraordinariamente bonita. Virou-se e fitou-me com um olhar magnético, parecia perplexa. Fez sinal para que me aproximasse e ficou expectante. Não consegui articular palavra, estava siderado, como se tivesse sido vítima de um encantamento.
“É…mudo?”
“Des…desculpe, estou apenas espantado. A sua imagem que se vê por aí não a favorece nada, ou pelo menos é amputada da magia que emana da sua presença.” Mal disse isto arrependi-me logo, magia amputada, que idiota, mas aquele atrevimento saíra-me da boca sem controlo racional nenhum.
“É excessivamente simpático…ou tolo.”
“Espero que não… na parte do tolo pelo menos, embora dissessem em tempos que era dos tolos o Reino do Senhor. Entre uma coisa e outra, opto sempre por ser simpático, é uma questão de princípio.”
“O quê? Prefere a empatia terrena ao Reino dos Céus?”, exclamou com um sorriso malicioso.
“O Céu se existe… há muito que nos foi roubado.” Aquelas palavras pareceram ter um estranho efeito em L., apenas denunciado por uma faísca repentina que lhe trespassou o olhar. “Embora, em abono da verdade, há pouco quando a ouvi cantar o ”Erros meus”, a ideia de Deus, pela primeira vez, não me pareceu uma coisa estranha.”
“Então é crente…para além de…simpático.”
“Nunca pensei muito nisso, apenas aprendi a acreditar em mim.”
“Isso é trágico”, disse levantando-se. Com um gesto vago fez desaparecer toda a gente do camarim. O que se concretizou com extraordinária facilidade e rapidez.
“Não me parece…pelo menos segundo a Comissão.”
“Precisamente segundo a Comissão, tem de acreditar nalguma coisa: Deus, Marx ou o Diabo. Assim, podem sempre prendê-lo ou agraciá-lo, classificá-lo em certa medida. O pior que pode acontecer é precisamente ficar sozinho…a ter ideia próprias…e com isso criar algumas ilusões de liberdade.”
“Isso…são ideias largas para uma fadista…”
“Cantar o fado permite-me uma certa flexibilidade…ou permissividade, são tradições sabe, posso mentir a toda a gente, até a mim própria, mas ao fado não.”
“Será a sua forma de chegar a um plano superior…”
“Eu…gostava de chegar a algum lado…tenho em mim a convicção que estes poemas e estas músicas foram feitos para isso, pois vão muito além da gaiola materialista onde me meteram…mas na maior parte dos dias sinto-me uma aberração anacrónica para turistas.”
”Está a castigar-se injustamente…“
“Anseio apenas por encontrar os signos esquecidos para aquilo que faço, ao ponto de isso me tirar o sono… mas aprendi há muito que…Deus é inacessível à nossa razão.”
“Em tempos ancestrais dizia-se… que não era inacessível ao nosso amor…embora não compreenda muito bem o que isso quer dizer.”
Fitou-me por momentos nos olhos, genuinamente surpreendida, depois desviou a cara e começou a soluçar baixinho, algo não estava bem.
“Isso são ideias bem largas para um trabalhador das fábricas de tofu.”
“Desculpe, acho que falei de mais. Não sei o que tenho, estranhamente parece que a conheço desde sempre, o que me confere o direito e a confiança de lhe falar desta forma. Tem de me perdoar.”
“A Amália era extraordinariamente devota, sabia?”, disse fungando. “Sabe quem é Amália não sabe?”
“Sim, claro, a prima do Eusébio.”
L. pareceu perplexa por momentos, depois sorriu e voltava a não ser um lugar comum dizer que ainda ficou mais bonita: “Você não está a ser sério.”
“Estava apenas a tentar animá-la, ao contrário do sorriso as lágrimas não a favorecem.”
“É galanteador…”
“Não sei o que tenho hoje, deve ter sido de algo que comi.”
L. sorriu outra vez e depois instalou-se momentaneamente um silêncio desconfortável. Uma sombra passou-lhe pelo olhar e por fim disse: “Então estava na falésia onde morreu MG.”
“É verdade, foi horrível.”
“Acredito”, disse afastando-se um pouco para tirar um cigarro de uma cigarreira de prata. Por momentos pareceu procurar qualquer coisa e eu mataria por ter o meu velho zippo comigo, para lhe dar lume com estilo, mas há muito que mo tinham confiscado. Por fim encontrou o isqueiro, acendeu o cigarro e disse: “Mas presenciou os acontecimentos?”
“Não directamente, estávamos perto e quando chegámos ainda prestámos socorro, mas já não havia nada a fazer.”
“Agradeço-lhe muito…e transmita os meus agradecimentos a todos os seus amigos também.”
“Obrigado, mas na realidade vinha cá com a intenção de lhe fazer uma pergunta…”
“Que pena, tinha ficado com a sensação que seria eu a intenção da sua visita…vanitas vanitatum omnia vanitas…”, disse com um sorriso,”Diga lá então.”
Roborizei mais uma vez como um pimento: “Aparentemente MG antes de morrer ainda conseguiu articular uma palavra, disse apenas Rosebud. Isso tem algum significado para si?”
“Não, não me ocorre nada com essa palavra.”
Parecia sincera, “MG gostava de cinema?”, voltei a insistir.
Ficou surpreendida: “Cinema propriamente dito, não…que eu saiba os únicos filmes que ele via eram filmes pornográficos.”
“Desculpe?…”, disse embaraçado.
“Não se desculpe, MG era muito diferente da imagem que faziam dele, especialmente nos meios da escalada. E esse nem era o seu defeito mais grave, se é que isso se pode considerar um defeito. A pornografia tem as suas virtudes.”
“Acha?”
“Ajuda a passar o tempo…mas como digo esse, por assim dizer, hábito não era o seu pior defeito, pois não tentava escondê-lo.”
“Pois… toda a gente mente.”
“Ah…é fã do antigo Dr. House.”
“Não sei quem é…trata-se apenas de uma constatação.”
“Humm…”, acabou o cigarro e voltou a sentar-se na cadeira de caracterização. “Então e você? Escala também?”
“Tento, pelo menos…”
“Sabe, em tempos também escalei. O que me fez apaixonar inicialmente pelo MG foi precisamente a sua paixão pela escalada e pela natureza.”
“Uma fadista escaladora, aí está algo inusual.”
“Não troce de mim, foi há muito tempo, mas era agradável a sensação de liberdade que vinha da absoluta inutilidade da coisa.”
“Bom, não é totalmente inútil…pode dar jeito se por exemplo se esquecer das chaves de casa.”
“Você tem piada…”, e levantou-se mais uma vez inquieta, “…mas agora tem de ir, estamos aqui sozinhos há tempo de mais e isso deve estar a causar algum burburinho nos bastidores e não queremos isso, pois não?”, disse soltando uma risada juvenil.
“Deus nos livre…”
“ Definitivamente… você…agora temos mesmo que nos despedir…espero que esta não seja a última vez que o vejo…”
“Assim queira…Mao…”
Uma risada franca despediu-me da presença de L., quando dei por mim já estava no verme a caminho de casa, poderia dizer-se que saíra do velhinho Estádio do Dragão a flutuar em vez de andar. Os acontecimentos recentes não me deixávam sossegar, primeiro a morte de MG, agora a sua viúva não me saía da cabeça. Estava bem lixado. Ia ser difícil adormecer e no dia seguinte escalava-se e logo na Pedra da Foice.
Na próxima semana será publicada a oitava parte. Banho de Sangue. Obrigado. SM
Ilustração: Vitor Baptista
Escalada 2084. VI Shit Happens.
Escalada 2084. V O Império do Eu.
Escalada 2084. III Le Plaisir.