Corremos todos para o sector de onde vinha a gritaria. Quando chegámos, o cenário era tétrico. Vários levavam as mãos à cabeça e andavam esgazeados de um lado para outro. Outros estavam estáticos, em silêncio, como que petrificados. Havia quem chorasse e mesmo quem risse histericamente. Os heli-drones filmavam tudo em círculos, confusos. No meio da confusão jazia M. Giant, prostrado de costas no chão, inanimado.
“Que aconteceu?”
“A corda partiu, a corda partiu, partiu, partiu…”, o segurador só conseguia articular essas palavras que ia repetindo maquinalmente, estava petrificado como uma estátua de sal, com a corda na mão ainda em posição de dar segurança.
“Saiam do caminho!”, berrou Carlos, que tinha treino paramédico militar da sua passagem pelo Exército do Povo.
Examinou rapidamente MG, levou os dedos à jugular, “ainda tem pulso, mas muito ténue, não se pode fazer muito, é melhor não lhe tocar, já alguém chamou uma ambulância? “, Ouviram-se vários “sins” entre os presentes.
No compasso de espera, de repente MG voltou a si e começou a balbuciar algo enquanto tossia. “O que é que ele diz?”. Carlos aproximou o seu ouvido para escutar melhor. E nesse instante MG contorceu-se num esgar, estremeceu e os seus olhos petrificaram-se.
“Oh, não!”, Carlos ainda tentou reanimá-lo, mas em vão.
M. Giant estava morto.
Por momentos, reinou um silêncio intimidante.Uma sensação de incredulidade pairava no ar como numa plateia de uma tragédia. A negação, que de início pareceu estar em todos os olhares, lentamente deu lugar à consternação. Depois a consternação assumiu várias formas e várias caras. Não era bonito de se ver. A cara da morte nunca foi bonita.
Alguém cobriu o corpo com um casaco. O Sol, a pique, martelava tudo e todos. Peguei na corda e examinei-a, estava cinzelada como se tivesse sido cortada por um bisturi. Muito estranho. Pelo tacto era uma Elephant 2.0 e estava completamente nova. MG, como as estrelas do futebol, sempre que escalava estreava material novo, um luxo absurdo e de certa forma inexplicável, mas o luxo não existia para ser explicado, existia para ser atirado à cara dos outros. Esta corda era, pela publicidade, completamente segura e impossível de cinzelar fosse em que circunstâncias fossem. Há muitos, muitos anos, que não havia acidentes deste género. Um defeito de fabrico? Peguei no saco de corda. Ainda tinha a etiqueta: Made in China. Isto descartava, à partida, a hipótese de defeito. O controlo de qualidade na China era inatacável, ao ponto de ser obsessivo, o que fazia encarecer consideravelmente os produtos chineses.
Este gajo tinha tudo chinês, um segurador profissional, era raro cometer erros, os equipadores-retocadores foram particularmente zelosos, hoje, ao aperceberem-se da presença dele aqui. Como é que isto foi acontecer? As sirenes interromperam-me de forma brusca as pseudo-investigações.
“Vamos bazar!”
“Deve vir a DRAS1 também.”
“ Sem dúvida!”. Apareciam sempre que acontecia algo incomum e muito especialmente quando envolvia alguma figura relacionada com a propaganda do regime. Pareciam surgir do nada, como se estivessem em todo o lado ao mesmo tempo.
“Não temos por onde bazar, só há um acesso.”
Num instante o circo ficou montado. Chegou um heli-jacto que ficou a pairar no ar e rapidamente desceu pelo guincho uma equipa de paramédicos, que não fizeram mais do que confirmar as evidências.
Depois chegou outro heli-jacto todo negro, com as famigeradas letra brancas da DRAS em cima da caveira e da gadanha, o sinistro símbolo. Desceram dois indivíduos com cara de poucos amigos. Mal tocaram no chão mandaram afastar toda a gente e passaram a pente fino o local do acidente.
“Você aí!”
“Eu?”, respondeu Carlos
“Sim, vimos nas imagens que prestou assistência a MG. Identifique-se.”
“Carlos Maximiliano, Cidadão-Atleta da Classe B2.4 número B5321148X”, disparou Carlos maquinalmente.
“Confere, com o chip”, disse o outro polícia enquanto consultava o seu dispositivo.
“ Nas imagens que viemos a ver, MG pareceu querer dizer-lhe qualquer coisa antes de morrer.”
“A princípio sim e de facto inclinei-me numa tentativa de o escutar melhor, mas aconteceu tudo rápido de mais e já não teve tempo de dizer nada.”
“Hum…ok, não se afaste muito que podemos ainda precisar de si. Você aí! Sim você, chegue aqui!”
Era o pobre segurador. Iria passar um mau bocado e provavelmente ser preso à falta de um melhor suspeito.
A polícia rapidamente encerrou a falésia e, depois de identificados os presentes, evacuou o local. Regressámos ao sector e preparámo-nos para arrumar o material e ir embora.
“Bom, que merda de dia de escalada, não cheguei a calçar os pés de gato”, disse Jaime, enquanto punha a mochila às costas.
“Não fizemos nem um ponto…”, resmungou Tomás, já despachado também.
“Como podem ser tão insensíveis, uma pessoa acabou de morrer aqui!”, berrou Guilherme, que não conseguia disfarçar a consternação.
“Estás a chorar o quê precisamente? Foi a primeira vez que viste o gajo”, disse Jaime.
“Tantas vezes o vi a escalar em vídeos que me sentia íntimo dele, era como se o conhecesse… de qualquer forma é uma grande perda para a escalada.”
“Não te preocupes o seu lugar será rapidamente ocupado, tudo não passa de números e rankings, a escalada não é muito mais do que isso”, afirmei.
“Ah!… que alívio, pensava que servia também para curar o cancro”, escarneceu Jaime, soltando uma gargalhada seca.
“E… não te esqueças que sem pontinhos perdes o teu estatuto de cidadão-atleta e sem esse estatuto lá se vai a escalada”, tornou Tomás.
“Não quero saber disso para nada…pelo menos hoje. Vocês são feitos de pedra, é o que são”, balbuciou Guilherme.
“Estranhamente não deixas de ter razão, a intimidade com a pedra cria corações de pedra”, murmurei, quase para mim mesmo.
“Bem…subimos todos um lugar nas tabelas…sem fazer nada, essa é que é essa”, disse Carlos, que de material já às costas, há uns tempos que observava a discussão em silêncio com uma leve expressão de escárnio na cara.
Os outros olharam-no atónitos.
“É verdade, o líder desapareceu do sistema, por isso subimos todos um lugar sem fazer nenhum.”
“É uma maneira de ver as coisas…pragmática…no mínimo”, disse. “Bom! ‘Tá no ir.”
Pelo caminho deixei-me ficar um pouco para trás e chamei o Carlos à parte: “O que é que ele disse, mesmo antes de morrer?”
“Nada de especial, disse apenas Rosebud e depois morreu.”
“Porque não disseste nada aos gajos da DRAS.”
“Foi um impulso… mas não me arrependo…as últimas palavras de um homem são sagradas, ou deveriam ser.”
1 DRAS em 2084 é o Departamento para a Repressão de Actividades Subversivas, uma polícia de carácter político sob o controlo da Comissão.
Na próxima semana será publicada a quinta parte: O Império do Eu. Obrigado. SM
Ilustração: Vitor Baptista
Escalada 2084. III Le Plaisir.