“Pardon, podem vocês emprestar-me o dispositif, la batterie do meu est mort”. Mal tinha chegado, MG ignorou a multidão de aduladores e dirigiu-se directamente para o nosso grupo, talvez por estarmos todos com os dispositivos na mão.
“Qu’é q’o caralho quer?”, disse Jaime.
“Chiu!, o gajo percebe português”, disse Guilherme, já todo sorrisinhos. “Com certeza Senhor Giant, aqui tem o meu”, e estendeu-lhe o aparelho quase fazendo uma reverência.
“Cet appareil não prestar, não é chinês”, disse MG, enquanto se formava um estranho esgar na sua cara que o desfigurava.
Guilherme empalideceu e balbuciou horrorizado: “Mas…”
“Non, non, não posso usar isto”, e afastou-se com enfado à procura de algum esbirro solícito que tivesse um aparelho à mão.
“Olha-me este caralho!”, disse Jaime furioso.
Guilherme estava inconsolável e afastou-se para que não lhe víssemos as lágrimas. Queríamos começar a escalar, mas a presença de MG era asfixiante, decidimos então seguir a manada para o ver a escalar um pouco.
MG trazia um segurador privado e profissional, não havia no mundo mais de uma dezena deles. Para a escalada desportiva eram escolhidos baixos e pesados como se fossem cepos, para o bloco já se queriam altos e entroncados. Dizia-se que davam corda como ninguém, com uma suavidade de veludo. Também tratavam dos pés de gato e de carregar todo o material, uma exclusividade que só estava ao alcance de alguns.
Começou a aquecer e, talvez por ser uma via de aquecimento e portanto sem pontos, escalava de forma displicente, “flirtando” com as câmaras dos héli-drones. Nisto um esganiçado grito lancinante corta o silêncio sepulcral que tinha caído sobre a falésia: “Putainnnnn!”
“Ça glisse, putain….”, MG estava pendurado na ponta da corda e praguejava em francês, como estava na moda. Tinha escorregado e olhava furioso para os pés de gato novos a estrear. Num acesso de fúria tira um pé de gato e atira-o à cabeça do segurador que, impávido, não se mexeu aguardando instruções, ” Putainnn, descend moi, je veus une autre paire de chaussons.”
“Estou cansado deste circo, vou bazar para outro sector. Que escarro!”, e Jaime afastou-se juntando às palavras o acto.
“Espera, vou contigo”, disse o Tomás, dando um salto para se desviar da cuspidela.
Nós continuámos a assistir, queríamos ver mais, pois a seguir viria a primeira tentativa à vista para mil pontos.
Já mais calmo MG, começou a mostrar porque era o líder do ranking, escalava suave e ritmado cruzando os cruxs de forma decidida e repousando nos puxadores, quando os havia, executando um pranayama perfeito. Neste estado chegou ao que parecia ser a secção chave: sete monodedos de primeira falange seguidos numa parede lisa. Pareceu hesitar com qual mão começar, depois atacou decidido, gritando a cada blocagem. Sete gritos depois, estava já na secção que parecia fácil e por fim chegou à reunião, cujo sensor de peso mal foi carregado activou e homologou o encadeamento através do chip. O funcionamento era simples e eficaz, cada ponto–ancoragem, ao longo da via, tinha um sensor de peso ligado à reunião e o encadeamento só era válido se o único sensor activado fosse a própria reunião. Clipada a reunião, MG brada ao vento o seu grito de triunfo característico que tantas vezes tinha-mos visto em imagens, mas nunca ao vivo:”Mille points à vue quel plaisirrrr!”
A multidão aplaudia ainda enquanto nos afastávamos em direcção ao sector onde já estavam o Jaime e o Tomás.
“Então que tal”, disse o Tomás, enquanto apertava os pés de gato.
“Foi limpinho”, disse o Guilherme, “como limpar o cu a meninos”
“Não sei se foi, o gajo já estava bem pump”, disse Carlos, enquanto começava a aquecer os dedos, o que nele significava estalá-los todos um a um.
“Não parecia”, voltou a insistir Guilherme.
“Estava, estava… isto não é como dantes”, disse eu.
“Quem me dera escalar nesses tempos no início do século, ter uma força astronómica e não produzir acido láctico”, disse Tomás, enquanto se preparava para subir a primeira via do dia.
O chamado Escândalo Ondra tinha explodido em 2020, quando descobriram que os principais atletas-escaladores usavam XT345E uma enzima que inibia a formação de acido láctico e que activada em conjunto com um derivado de testosterona pura, dotava o organismo de uma força explosiva, acabando com a “pump” ao mesmo tempo.
“Dizem que ainda produzem XT345E algures em Inglaterra…”, disse Tomás, mais interessado na conversa do que em começar a escalar.
“Esses Ingleses, filhos da mãe, hão-de pagar bem duro, não quiseram fazer parte da União das Repúblicas… sempre do contra, uns rebeldes indisciplinados…”, disse Carlos raivosamente.
“Bem não interessa, mal metêssemos isso o chip detectava logo e seríamos expulsos do ranking.”
“Dizem que tirava a tesão…aquilo…”, disse Tomás, que entretanto se sentara e desistira definitivamente de escalar.
“Sim, ficavas a falar fininho”, disse Jaime.
“E para que querias a tesão quando podias escalar este mundo e o outro”, disse Guilherme com os olhos a brilhar.
“De qualquer maneira continua a não haver gajas a escalar, quando entrámos vi a lista do pessoal que já estava na falésia e não estava uma gaja sequer…”, disse Jaime
“Nem pretos”, disse Tomás.
Olharam todos para ele de forma estranha…
“É verdade, nunca se percebeu porque não há pretos a escalar.”
“Também não há índios, e ninguém se preocupa com isso, nunca se viram índios a escalar ou esquimós”, disse Jaime.
“O Ron Kauck era Índio”, disse Guilherme
“Não”, corrigi. “Tinha a mania que era Índio ou tinha uma costela de Índio.”
“Foi muito bonito o funeral Índio que lhe fizeram em Yosemite”.
“E ilegal”, disse Carlos.
“Na altura não eram ilegais os funerais étnicos. Palerma!”, voltei a corrigir.
“ Não sei porque te irritas tanto. A incineração é de longe o melhor sistema, higiénico, amigo do ambiente e não ocupa espaço, uma solução muito eficaz.”
“Sim. Sempre deram razão àqueles gajos que se vestiam de preto e estendiam a mão para fazer uma saudação…”
“Quem? Quem?”, perguntaram Tomás e Guilherme ao mesmo tempo.
“Não vale a pena…”
Jaime estava divertido e resolve instruir os putos: “Nazis, caralho!”
“Ah…nazis…pois…eles queimavam os seus mortos? Era isso?”, voltaram a insistir.
“Não vale mesmo a pena, vamos mas é escalar”, disse resignado, enquanto ao longe se começam a ouvir gritos, primeiro imperceptíveis, depois cada vez mais altos até que conseguimos perceber o que diziam, “Acidente! Houve um acidente!”.
“Foda-se! assim nunca mais escalamos”, disse Jaime.
Na próxima semana será publicada a quarta parte: Rosebud. Obrigado. SM
Ilustração: Vitor Baptista
Em verdade o Ron Kauk até tem uma costela lusa, uma avó dele era açoriana (true storie).
Equipa Nortebouldering bom 2013, com votos de continuação de bom trabalho neste vosso blog.
Cá está, quase um caso de tripla nacionalidade como MG… Norte Americano, Luso e Indio por afinidade.
Obrigado pela info e um Excelente 2013.