Escalada 2084. I Chipados.

 

“Passamos ao lado?”, foi como se um vento gelado de repente assolasse o grupo. Estacaram e fitaram-me silenciosos.

“Passamos ao lado?”, voltei a insistir.

“Para quê? “, disse Guilherme.

“Não sei, só para ver o que acontece.”

Guilherme pousou em mim os grandes olhos inexpressivos de carneiro e quando falou o nervosismo só era denunciado por uma leve tremura do lábio inferior, “Mas, se não passarmos pelo pórtico de reconhecimento, é como se não estivéssemos aqui.”

“Além do mais é ilegal”, disparou desta vez Carlos, enquanto começava a estalar os dedos de forma horrível, algo que fazia sempre que começava a ficar impaciente.

“Mas tu estás aqui, não estás?”disse, olhando directamente Guilherme nos olhos. Olharam todos para mim de forma estranha. Considerações sobre a metafísica do real a esta hora da manhã, especialmente quando as pupilas já estavam bem dilatadas por substâncias que servem precisamente para diluir a realidade, eram de facto descabidas. Encolhi os ombros e continuámos, em manada, pelo pórtico adentro, ao som dos “beeeps” que ecoavam à medida que cada um ia passando.

Estava um dia luminoso e frio, atípico para Abril, o que ampliava ainda mais a beleza deste lugar. Um planalto desértico estende-se para Sul, interrompendo-se abruptamente para dar lugar a uma parede, como se de uma cascata de pedra se tratasse. Um único caminho, sulca a imensidão. Por mais que tente, não consigo habituar-me aquele pórtico metálico ali espetado no meio do nada.

Não se vê vivalma. Há anos que não se vê ninguém local. Já ninguém mora no campo. Pelo menos desde que a agricultura tradicional deixou de existir e foi substituída pelos complexos estratificados verticais. Também não há animais domésticos. Não são precisos para nada, especialmente quando quase 100% da população é sintéticovegan. Os bichos assim não sofrem, disseram. Os bichos assim não existem, esqueceram-se de dizer. De qualquer forma as proteínas sintéticas foram uma boa invenção. A produção industrial de alimentos sintéticos acabou por ser a solução para 12 biliões de almas. Matou-se a fome e, pelo caminho, a vontade de comer…

“Dói-me o Chip”. A lamúria de Tomás, interrompe-me subitamente as conjecturas.

“Isso é impossível”, disse Carlos.

“A ti nunca te dói, porque és um puto e inseriram-to à nascença.”

“Pede para te colocarem noutro lado, no ombro não é o local mais adequado para escaladores.”

“O meu está na nuca e ‘tá-se bem”, disse Guilherme.

“Dói-te outra coisa qualquer… o chip é difícil, pelo menos não há casos relatados”. Tudo estava ligado ao Chip, conta bancária, relógios de ponto, portagens nos mais diversos pórticos de acesso a tudo e mais alguma coisa, localização GPS contínua. É impossível estar perdido, diziam. É impossível viver ou morrer sem a Comissão dar conta, pois até o batimento cardíaco é monitorizado pelo Chip, a bem da nossa saúde e segurança. Saúde e segurança, segurança e saúde, esta dicotomia atormentava-me recorrentemente, mas procurava mantê-la bem no fundo da mente, não fosse o Chip ler os pensamentos, como diziam os mais paranoicos. Neste estado de espírito seguia, em último na fila indiana, pelo estreito caminho de acesso à falésia, quando, já próximo da descida, vemos alguém a correr desenfreado na nossa direcção.

“É ele! É ele! Ele está a vir para cá” grita, enquanto passa por nós, de olhos esgazeados, a correr sem parar.

Ficámos a olhar enquanto se afastava em direcção ao parque.

“Foda-se!…Que merda foi  esta?” solta Jaime que estivera calado como um rato até ao momento.

 

Na próxima semana será publicada a segunda parte: A Sombra de M. Giant. Obrigado.

Ilustração: Vitor Baptista.

4 Responses to Escalada 2084. I Chipados.

  1. FCS diz:

    Bom começo! Com algo de pessimista e de terror. Por outro lado, chegarmos a 2084 já tem muito de optimista…

  2. MC diz:

    Enquanto não instalam esses pórticos, poderemos de continuar a usar o tradicional cartão de pontos, “fast bicho”. Estes cartões não funcionam tão bem como esses pórticos, mas é uma importante ajuda para decidires qual será o teu próximo projecto.
    Basta consultares os catálogos e escolher. Depois só tens que lá ir, passar primeiro no controlo óptico, que apresenta ainda pouca fiabilidade, pois pode permitir passares para a próxima fase, o controlo digital, sem possuires o respectivos pontos. Na fase do controlo digital, apenas terá efectivo acesso aqueles que realmente tiverem pontos suficientes. Contudo, já sabemos que em Portugal há sempre maneira de contornar estes rígidos sistemas usando um Crocodilo de Tróia para mitrar o sistema.

    Esperemos então por mais um pórtico!

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