Privados, por humanas limitações, das nossas primeiríssimas memórias. Sabemos apenas que o primeiro ar deste mundo nos fez berrar, o primeiro passo nos fez cair e a primeira vez que caímos foi para nos levantarmos. Será assim pela vida fora: prisioneiros de um instinto que faz de cada queda uma aprendizagem. A nossa tragédia é também a nossa salvação. Se a escalada é ascensão a sua antítese, a queda, é a ignição. Uma não vive sem a outra na grande metáfora da vida que é, para quem assim quiser ver, a escalada.
O primeiro passo é como a primeira passa. Não sabemos bem o que estamos a fazer, é intoxicante e vicia.
O primeiro passo que me viciou foi nas Fragas do Castelo, em Valongo. Não foi a primeira vez que escalei, mas sim a primeira vez que encontrei um passo que não conseguia fazer. E comigo aconteceu logo no primeiro dia. Um caso de predestinação, poder-se-ia dizer.
O passo era de placa, concretamente um arranque de uma via. Envolvia subir um pé bastante alto para uma réglete, colar a cara à parede e esticar um braço, em precário equilíbrio, até uma boa presa. Sem pés de gato, sem magnésio e sem arnês, era como se a parede estivesse coberta com uma fina camada de massa consistente, fazendo com que a diferença entre a minha escalada e a escalada de um pau de sebo por um folião em busca do prémio fosse quase nenhuma. Bom, a escalada do folião seria, sem dúvida, mais estética.
Como tinha chegado aquela situação? Tudo começou nos escuteiros. Cansados de atar nós e praticar boas acções, começávamos a sentir uma atracção pela aventura. E aventuras, como sabem, envolvem cabos e ganchos e vertiginosas montanhas.
Para cumprir o nosso desígnio tínhamos uma certeza: precisávamos de material. Das vertiginosas montanhas trataríamos depois. Ora, material de escalada pura e simplesmente não existia, ou se existia não sabíamos onde o conseguir. Estávamos neste impasse quando encontramos, no nosso agrupamento, uns opúsculos da federação de espeleologia onde se ensinava a construir arneses com correias de cintos de segurança de automóveis. Esmiuçamos o esquema, parecia fácil de fazer e era exactamente o que precisávamos. Rapidamente posemos mãos à obra. Uma visita ao sucateiro local. Os dotes e a maquina de costura de uma das mães e, nasciam uns magníficos arneses integrais que fechavam no peito, com um sofisticado “click”, usando própria fivela automática dos cintos de segurança. Agora que éramos orgulhosos proprietários de luxuosos arneses de fecho automático, precisávamos de cordas. Uma incursão à drogaria local revelou imediatamente que as cordas plásticas eram as melhores. Resistentes, coloridas e ainda por cima baratas. Não se podia pedir mais. Sentíamo-nos uns sortudos.
Assim aprovisionados estávamos prontos para um encontro com o destino, ou melhor: prontos para a aventura. Quis a deusa da fortuna que não fizéssemos a mínima ideia onde se escalava. Na altura não abundavam falésias equipadas, ficando a nossa experiência reduzida a uma atabalhoada subida de uma encosta de mato em que seguíamos todos atados uns aos outros, tal e qual uma cordada múltipla de progressão em glaciar. Esta ascensão teve o condão de sossegar o nosso espírito aventureiro por uns tempos, pois subir encostas de denso mato não nos pareceu assim tão espectacular e perigoso ao ponto de insuflar doses industriais de adrenalina nas nossas veias.
Andamos sossegados por uns tempos até que chegou ao Palácio de Cristal uma feira de campismo, não sei se chamaria já Campisport. Sendo os escuteiros um alvo preferencial destes eventos também recebemos convites.
Lá andávamos a tentar orientar-nos no labirinto de caravanas, tendas familiares, barcos e churrasqueiras, quando demos de caras com o stand do Clube de Campismo do Porto. O stand ficava a um nível superior, uma espécie de segundo anel que hoje já não existe, e tinha um boneco vestido de alpinista pendurado numas cordas sobre o vazio. “Uau! isto sim é o que nós queremos!” Exclamamos. Enquanto observávamos, esgazeados, a precária dança do boneco sobre o abismo. Ficamos com o contacto do clube e fomos à nossa vida com a promessa de uma visita próxima.
Aparentemente o clube reunia todas as quintas à noite. Enviamos dois batedores, os dois com mais liberdade para sair à noite, e as novidades não tardaram a chegar. “ Pá! Há lá um gajo muito fixe, ficou um tempão a falar connosco, acho que podemos aprender lá umas coisas”. Esse “gajo” chamava-se Vitor Teixeira e iria mudar as nossas vidas para sempre, pelo menos a minha mudaria.
Ao nosso entusiasmo de aprender juntou a sua vontade e talento para ensinar e rapidamente se organizou um curso de escalada para a próxima Páscoa em Valongo. Perfeito.
Seriam umas cinco da tarde e a aula do curso tinha chegado ao fim. Tratávamos do acampamento na zona dos moinhos das Fragas do Castelo. Não me dava por vencido e não conseguia desviar a minha atenção da parede ao fundo. “Vitor? O que é necessário para conseguir fazer aquele passo?” Perguntei. “ Pá, tens de ter pés de gato”. “Hum…podias emprestar-me os teus velhos?”. Ele olhou-me estranhamente, o Vitor tem um metro e noventa, “Tá bem, já que insistes, mal não te vai fazer” e lá fui eu com uns Boreal Firé 44 todos esburacados tentar o meu primeiro passo. SM
Inspirador, como sempre!
Muito bom, Sérgio. Parabéns!
Muito bom texto a evocar os primeiros passos, gravados como cicatrizes na nossa memória. E boa analogia com o começo da vida. Ascensão e queda… eu diria até que a vida começa mesmo com uma queda, caímos no mundo, de um lugar perfeito para a eterna dificuldade da ascensão. Depois, passo a passo e quedas sucessivas, mas nenhuma tão grande e grave como a primeira… como na escalada…
abcs
Muito bom. Parabéns (em dose dupla).
Parabéns pelo texto.
Não me lembrava dos arneses feitos com cintos de segurança. Nessa matéria, a minha memória cristalizou quando vi os “piolets” feitos com cabos de vassoura que o Silva das motos utilizou na Serra da Estrela.
Já do resto da história que aqui contas lembro-me bem. Aliás, estou a aguardar a entrega das 900 digitalizações de slides desses tempos e (agora é que estás lixado!) vou começar a publica-los no Facebook. Apareces um muitos e num deles estás a tentar a concluir o passo chave da via do teto nas fragas do castelo. Acho que foi apenas algumas semanas depois do dia que aqui relatas 🙂
Invocado, eis que apareces das profundezas da net carregado com 900 fotos…hehe…Os arneses são anteriores ao “clube”. Obrigado e Grande Abraço.
Muito boa reconstituição memorial.
O primeiro passo em épocas passadas, quando os escaladores eramos românticos e os pernes M10 ainda não se partiam (porque ainda não eram utilizados!).
Parabéns pelo texto.
Obrigado a todos.
Acabei de viajar no tempo…!
Curiosamente foi nos escuteiros a minha primeira experiência de escalada com cordas de sisal e em top, como é óbvio, desconhecíamos qualquer outra técnica. Porreiro mesmo era rapelar!
Fantástico relato Sérgio.
Boas
Apesar de me considerar um escalador muito mais recente que o Sérgio, senti esta história muito familiar!
Também escalei a primeira vez em Valongo, com os escuteiros de VN Famalicão num trofeu aventura (92, 93… talvez).
Mas mais curiosamente, tenho ideia de ter visto esse alpinista nessa exposição do 2º piso.
Era um miúdo e lembro-me melhor dum outro stand com demonstração e venda duns aviões de esferovite lançados com um elástico que, depois duma trajectória circular, voltavam ao lançador!
Ficaram bem gravados na minha memória…
Será possível, ou fruto da minha imaginação???
Felizmente, passei à frente os arneses de cinto de segurança, para começar com os de cintas!
Sérgio faz-nos 1 favor:
ESCREVE UM LIVRO!!
Assim partilharias essas (e muitas outras) histórias,aventuras e experiências através dessa intima relação que tens com as palavas.força!!
abraço
Confesso que a minha entrada neste meio, a escalada, foi totalmente desprovida de romantismo, aliás, fui empurrado, não sei bem para o quê, e os meus primeiros passos deixaram tudo menos boas recordações. Apesar disso, fui insistindo, talvez para fugir à rotina, talvez porque isso permitia aproximar-me da natureza de uma forma diferente. Assim, após anos e anos de pega e larga, sem grande motivação por esta ou aquela via, sem grande empenho em manter ou melhorar o grau, com muitos altos e baixos, se tivesse que puxar pela memória para falar dos momentos mais marcantes da minha viagem vertical, não procuraria na génese, antes evocaria os episódios vividos em Fontainebleau, com a fábula d’a tenda e o Camenbert, em Meschia, com aquele Vecchio Molino, em Hoya Morros, com aquela terrível subida de aproximação, ou ainda os dias passados em Cantar Galo, alguns deles a terminar a correr a fugir da neve. O início não foi auspicioso, mas não me arrependo de ter começado. Uma coisa tenho por certo, as pessoas que conheci ao longo destes anos, e já são alguns, são um dos maiores trunfos que este mundo possui e são um dos principais motivos por eu querer continuar nele.
Ora nem mais!