O ano não poderia acabar da pior forma para a comunidade da escalada. Mais um caso, que rebenta com estrondo, de aparente mentira no mundo da escalada. Pedem-se provas, exige-se “uncut footage” , datas, nomes dos seguradores, etc. Sumariamente exige-se o sangue de Rich Simpson na arena web-mediática.
Rich Simpson pode considerar-se um escalador de topo na cena mundial. Tem na sua algibeira vias como a Action Direct e A Muerte. É reconhecido como extremamente forte no covil da “School Room” em Sheffield, onde era e é considerado o sucessor natural de uma espécie de “dinastia do power” iniciada por Ben Moon e Jerry Moffatt e continuada por Malcolm Smith, o que por si só, e mesmo que não escalasse nada em rocha, lhe garante uma espécie de aura e um lugar na iconografia local. A juntar a isto parece que correu a milha em menos de quatro minutos, a maratona em menos de 2:30 horas e reclama um currículo no Boxe de 16 combates sem perder, tudo performances de topo nesses diversos desportos, fazendo dele uma espécie de super atleta, o que juntado ao facto de frequentar Cambridge lhe confere um estatuto de quase super-homem.
Subitamente, começaram a aparecer rumores que estes feitos poderiam não ser verdade, sendo a façanha da milha o despoletar da história, aparentemente fazer a milha em menos de quatro minutos é uma marca de elite no atletismo. No fórum do UKC num tema que tem mais de 500 entradas, os comentários sucederam-se com um pendor cada vez mais negativo para R.Simpson, levando o site a uma declaração editorial sem precedentes, dizendo que contestou RS com algumas perguntas e perante o seu silêncio decidiu retirar todas as noticias sobre os seus “feitos”, dois dos seus patrocinadores afinaram pelo mesmo diapasão e fizeram as mesmas questões, perante o mesmo silêncio emitem, estranhamente, comunicados para o UKC a anunciar que quebram o contrato com o atleta. O comunicado acaba com esta sentença: “Our general policy is to have faith in reported climbs and climbers and to not seek ‘proof’ of ascents. However if world class performances have been claimed, especially from a fully sponsored and well known athlete who is publishing these achievements on his sponsor’s websites, we would expect some cooperation from that athlete if basic details are requested.”
Esta triste história, tem apenas um facto comprovado, um órgão de informação com alguma credibilidade fez umas perguntas que ficaram sem resposta, o resto é pura especulação, quilos e quilos de especulação. Surgem no entanto questões laterais interessantes como esta: Até que ponto o cruzamento da escalada com o “comércio” está a mudar para sempre as regras do jogo?
Um argumento começa a ganhar peso, o escalador dito profissional é “obrigado” a apresentar provas dos seus feitos, pois já que recebe da industria tem de dar em troca provas dos seus “feitos”. Os media, por outro lado, começam a questionar a veracidade da informação que recebem, o que é somente uma aproximação ao jornalismo profissional cujo primeira regra é o cruzamento das fontes.
Tudo isto é muito bonito. É bom que existam pessoas capazes de se sustentarem na própria industria da escalada, é bom que a informação seja melhor e mais credível. É, a forma possível de crescimento ou alargamento para o mundo. Só que na essência a escalada não é deste mundo. Assenta em valores cada vez mais anacrónicos e difíceis de sustentar, principalmente no vórtice web-mediático, que tudo quer sugar incluindo a própria essência da escalada.
A palavra do escalador é sagrada. Sempre foi assim e assim deveria ficar, mesmo que venham a ser descobertos grandes mentirosos todos os anos. É nesse dogma que assenta a nossa liberdade, é esse dogma que nos torna diferentes.
Provar é perder. Ser chamado publicamente a apresentar provas num fórum ou site da internet é ridículo e a pessoa, sim trata-se de uma pessoa, tem todo o direito a não responder, sem com isso comprometer o que quer que seja da sua integridade.
Prefiro cem vezes um Rich Simpson mentiroso que um Rich Simpson ditoso a fornecer uma lista dos seus seguradores em cada via e a fornecer vídeos a um qualquer fórum inquisitório. Um, dois, vários mentirosos não matam o espírito da escalada, são acidentes de percurso de qualquer actividade humana. A necessidade de apresentar provas pode mudar para sempre a fisionomia da escalada.
Este caso faz lembrar a polémica Barnabé vs Huber. Prefiro, outra vez cem vezes, o genial Barnabé a um Huber que filma “acidentalmente” os seus solos integrais, e que quer fazer da sua palavra lei. Vale a pena terminar com um excerto de Álvaro de Campos: …”Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?”… SM
Post-Scriptum. Um excelente Natal, mesmo com este bacalhau de difícil digestão.
Discordo.
Se fosse patrocinador também não queria correr o risco da minha empresa ser associada a um possivel mentiroso! E dado o apoio anterior (patrocinio) o atleta tem o dever de dar as explicações suficientes para que a imagem da empresa não seja prejudicada.
Boas festas
Abraços
R.
Sem dúvida. A minha opinião vai no sentido da necessidade da palavra do escalador ser considerada um dogma. A relação comercial e profissional com o seu patrocinador é outra história, e cabe a cada empresa decidir o que é melhor para a sua imagem, como foi o caso, duas saltaram fora, outra como a Moon não se pronunciou.
Bom Natal e Bom Ano!
Enfim, a escalada não se difere em nada das outras actividades no que respeita ao caracter humano.
Ao longo da historia, várias são as ascensões desmentidas, discutidas e, mais tarde, provadas falsas.
Já aqui o disse e repito que já testemunhei algumas grandes mentiras, tanto no meio alpinistico, como no meio da escalada em rocha/gelo. A maioria dessas mentiras vindas de “nomes famosos”, admirados por muitos.
Também vejo a escalada com muito romantismo e o “espírito” para mim é tudo, por isso não concebo a mentira na equação, porque acabava por atraiçoar os meus principios.
Mas, também já aprendi que os escaladores não somos diferentes em nada das restantes pessoas. Temos as nossas fraquezas e as nossas fortalezas.
Mentir sobre algo tão profundo e intimo é uma questão de caracter e não de actividade.
Não são os patrocinios que corrompem mas sim, alguns patrocinados que se deixam corromper.
Também existem bastantes exemplos de “patrocinados”, com valores éticos muito sólidos e fieis ao “espirito”.
Bom ano.
Paulo Roxo
Se a mentira foi de facto surpreendida, trata-se apenas do “sistema” a funcionar e a manifestar com exemplar estrondo o que acontece aos “prevaricadores”.
Quanto a contratos de representação, as partes saberão que cláusulas subscreveram.
Olhando para trás no tempo… recordo que uma grande parte das “minhas micro-proezas” não guardo videos, fotos, relatórios, memórias suficientemente detalhadas para convencer um jurado, e mesmo, muitas das testemunhas já sairam do circuito dos “arroláveis”. Quando alguém contestar os meus 6ºs graus estarei em muito maus lençóis =)!!!
Depois temos a outra parte bem evidenciada no post: a demasiada avidez e sofreguidão com que algumas entidades exigem provas esquecendo elas próprias que tão feio como mentir é exigir provas de tudo e de todos a qq preço.
Só quem se empanturra de curricula escalatória é que pode sentir estas indigestões. Quem conseguir suplantar as rodas do escalonamento social promovidos pelos media passa completamente bem à margem dos ruídos da turba.
Um dia ainda vamos ter saudades do tempo em que a sujidade nos nossos olhos e ouvidos se resumia ao pó de magnésio.
24-12-10
FPereira
Tenho como principio não questionar e dar sempre o beneficio da dúvida, tal como ainda dou ao Barnabé Fernandez. O caso do Richard Simpson é diferente os rumores já vêem desde o encadeamento da Action Direct, em que encadeou num dia em que os seus companheiros de escalada foram para outro sector, não se conhecendo quem realmente o assegurou e testemunhou o feito. São sucessivos os relatos de encadeamentos fantásticos sempre rodeados de alguma nebulosidade, que sempre fez duvidar os mais sépticos.
O que fez rebentar a bolha foi o encadeamento de algumas vias nos Alpes em velocidade e os seus tempos inumanos. Daí foi pouco tempo até se começar a procurar os dados sobre os seus feitos, umas supostas 2:30 na maratona de New York, uma milha em 4 minutos, e os combates de boxe. Todos estes feitos para serem verídicos estão registados em clubes e/ou federações. O seu nome nem foi encontrado em nenhum destes eventos ou organismos.
O rumor foi crescendo o que fez com que alguns dos seus patrocinadores o questionassem sob os seus feitos e lhe pedissem algumas provas, a sua resposta foi rescindir o patrocínio com as duas marcas, sem nunca responder ás questões. E esta tem sido a sua resposta a todos os meios que o têm contactado, exigir que nunca mais o contactem.
Ninguém dúvida que seria um indivíduo forte, até pelos videos onde mostra sequências de várias vias. Mas sabemos que vai um longo caminho entre aqueles que têm força para as vias e os que realmente têm capacidade de as encadear.
O Iker Pou após o encadeamento da Action Direct, na qual teve sempre uma camera a gravar os pegues do possível encadeamento, dizia que hoje em dia ao fazer algo e publicar perante o mundo da escalada, tem que se ter provas.
É algo muito simples, quem quiser continuar na sombra, não precisa sequer de aparecer nas noticias. Mas quem quer obter dividendos do seu feito, tem que se precaver é o mínimo exigido a escaladores que se afirmam como Profissionais (na maneira como levam a escalada).
Escaladores como Simpson cometeram o pecado capital de suceder numa série feitos duvidosos unicamente sustentados pela sua excelente forma face ao campus board e ao School Room. Bastava que no meio destes feitos ele conseguisse provar o encadeamento de meia dúzia de vias. Para calar muitas das bocas que se levantam a clamar por justiça.
Em relação ao Barnabé, parece que voltou a escalar, já tem feito 8a+ à vista e vários novos 9a’s e segundo David Munilla é o escalador mais forte do momento na Andaluzia, pode ser que ainda o vejamos a repetir a Chilam Balam para as câmeras ou a propor desta vez um 10a+.
…quanto a isto, só tenho um comentário a fazer: _ Há uma vírgula mal colocada no sexto parágrafo, terceira frase!
Obrigado pelos interessantes comentários. Uma vez mais reafirmo que o que é relevante neste caso não é se mentiu ou não. É até que ponto a profissionalização dos escaladores e os contratos de publicidade se ingerem na ética própria da escalada e até que ponto essa ética não será destruída pela própria profissionalização.
Valerá a pena comprometer os valores de liberdade e honra herdados de gerações de escaladores?
O bom senso diria que as relações de fidelidade ficassem entre as partes envolvidas, ficando na consciência de cada um o que sacrificaria em termos de valores com os ditos contratos.
Fora do âmbito comercial, no meio jornalístico especializado, amador ou profissional, deveria ser defendida a ética tradicional, por forma a perpetuar os valores de honra sob os quais a escalada sempre existiu.
O que torna a escalada especial não são os números, sirvam eles para quantificar a dificuldade ou para fechar um contrato de publicidade.
Uma actividade que pode ser praticada absolutamente à margem da sociedade, em plena natureza, com uma liberdade, intensidade e criatividade fora do comum é algo que merece ser preservado.
De facto, concordo que a profissionalização e o excesso de publicidade podem ir em direcções opostas aos “valores de liberdade herdados”.
Muito embora a escalada seja filha de uma “criação” de élites adinheiradas que, em finais do século XIX, se dedicavam a contratar pastores como guias, para realizarem “excursões” pelas montanhas, logo esta se tornou numa espécie de estandarte anti-sistema. Refiro-me sobretudo às décadas de sessenta/setenta, tendo como referência a “fauna” instalada no campo quatro, na base do El Capitan e sem esquecer as invasões de Ingleses “hard-core” que todos os anos plantavam as suas tendas junto à “Pierre D`orthaz” (Chamonix) e se dedicavam a roubar comida nos super-mercados com um entusiasmo quase tão grande, como o que dedicavam a escalar as vias mais dificeis dos Alpes.
No entanto, mesmo durante esse periodo de ouro de grande imaginação, ingenuidade e liberdade, foi dado a conhecer ao mundo as grandes realizações do momento. Foi feita a devida publicidade (nos meios da altura) acerca das escaladas que esse bando de aventureiros concretizava.
Embora concorde que praticamos uma actividade “marginal” diferente do cidadão comum (pelo menos é isso que eu sinto, quando de repente o ante-braço começa a inchar, a perna a tremer e não consigo dar com a peça adequada para proteger determinado run-out mais precário), tenho de reconhecer que, se estivesse sozinho no mundo, se não tivesse ninguém com quem comunicar, comentar, partilhar, a escalada não faria qualquer sentido.
Em modos de confirmação, é fácil constatar a riqueza bibliográfica de que se reveste o mundo da montanha e da escalada. São inumeros os livros publicados inspirados nesta actividade também ela inspiradora, mesmo pelos mais acérrimos “vagabundos”. E, com a era da internet são inumeros os sites e blogs relativos ao tema.
Tudo isto para dizer que penso que a publicidade não é necessáriamente má ou destrutiva, se fôr debitada com conta, peso e medida. Se existir honestidade ética e humanidade, evitando a criação dos tais “semi-deuses”, se o equilibrio fôr bem sucedido, a publicidade pode servir até como um meio de inspiração e reforçar o “espírito”, para que a escalada continue a ser praticada “em plena natureza, com uma liberdade, intensidade e criatividade fora do comum”, como muito bem o dizes.
Paulo Roxo
Penso que este acontecimento prova que, infelizmente, a palavra do escalador nunca poderá ser sagrada. remontando à Chilam Balam, o Bernabé Fernandez largou a bomba atómica sob a forma de um 9b+ (a juntar ao 8c+ e ao 9a+ do seu CV), isto há mais de cinco anos, e numa altura em que o 9a+ era uma raridade. Depois de enviar um e-mail para a Desnivel a dar a notícia, mostrou-se surpreendido por esta publicação jornalística lhe pedir provas (evitando assim ser linchada em praça pública por todos os que a acompanham e esperam informações fidedignas) e decidiu que não tinha de prestar contas a ninguém. Como se a Desnivel fosse o twitter.
O caso do Rich Simpson parece-me tão gritante como este, ou talvez mais. E, sinceramente, tenho muita dificuldade em engolir que um tipo com a sua compleição física e com o seu power seja capaz de correr a maratona em 2h30m sem que os seus músculos consumam todo o oxigénio do planeta, quanto mais a milha num tempo candidato a marca do ano na Grã-Bretanha. Ele, de facto, não é obrigado a provar nada. Mas nós não somos obrigados a engolir esta farsa. Aliás, parece-me que ele até se esticou um bocado relativamente a algum desconhecimento dos escaladores em relação às performances “normais” em outros desportos, ao avançar com estes números e esperar que todos acreditassem. Porque, no fundo, o Rich Simpson resumia o seu CV aos números; os graus, os minutos, os combates…
Para concluir, acho legítimo que estas “proezas” sejam questionadas. Não temos de acreditar em tudo o que lemos. Aliás, gostaria de saber se existe alguém no mundo sequer capaz de fazer a maratona em 2h30 e a milha em 4 minutos. Questionarmo-nos sobre estes inacreditáveis feitos é nosso direito como seres pensantes e é sinal de espírito crítico e, sinceramente, acho incrível como só agora ele foi apanhado.
Pertinente comentário. Não estou a pedir a ninguém que se demita do seu espírito crítico e passe a fazer parte de uma seita fundamentalista centrada na palavra do escalador.
O que tento mostrar são dois mundos:
Um em que a palavra do escalador é consensualmente aceite e onde surgem ocasionalmente mentirosos como excepções à regra.
Outro, onde a palavra do escalador não vale nada e tudo é questionado exigindo-se testemunhas e imagens “uncut” a toda a hora. Um mundo, onde quando alguém me diz que fez a via ou bloco tal, a primeira coisa em que vou pensar é se o fez mesmo.
Para mim a escalada no segundo não é sequer concebível.
O mais provável é o primeiro estar a desaparecer aos poucos empurrado pela profissionalização e pelo fluxo da própria sociedade em si. Hoje é preciso ter mais espírito crítico para se ter fé, seja ela qual for, do que para questionar tudo o que vemos.
Obrigado mais uma vez pelo pertinente comentário.
A massa precisa de semi-deuses e de heróis fantásticos. De vez em quando e desde sempre alguns com pés-de-barro vêm candidatar-se aos pedestais. Quase sempre o tempo a seu tempo os tira de lá e lá deixa os verdadeiros que também os há. Simplesmente, este nosso tempo está feito para os tigres de papel e reis fabricados. Não há razão para preocupações, basta admirarmos só o que conhecemos em vez daquilo que nos põem no prato. Os meus heróis sempre foram os meus amigos.
abc