Problema de Bloco. Uma definição.

Diz o mito que John Gill, o gajo que inventou isto, fazia problemas matemáticos para se entreter enquanto descansava entre as tentativas a blocos que estava a trabalhar, e que daí virá a designação: Problema de bloco.

Esta é uma bonita história mas não responde à questão: O que é  um problema de bloco?

A actividade mais simples do mundo da escalada, é simples somente à superfície, pois logo na sua definição essencial coloca questões cuja resposta é tudo menos óbvia. Porque os blocos não são sempre linhas evidentes num bloco perfeito, como por exemplo o Kalashnikov em Sintra, ou o Ovo na Pedra do Urso. Vou-me socorrer do site B3 de Jamie Emerson, uma das melhores referências para quem gosta de perder algum tempo com estas questões, e do livro de Héctor del Campo:  “Escalada en Bloque”, este  um mestre, também, quer a escalar quer a interiorizar a actividade, ambos são muito exigentes eticamente e excelentes exemplos a seguir.

Antes um aviso à navegação: já que peguei no livro do Héctor transcrevo aqui um paragrafo: …” Escalar, sejam pedras de dois metros ou montanhas de oito quilómetros, é antes de tudo uma experiencia pessoal, desde que estejas satisfeito com os meios utilizados para alcançar os fins, perfeito; As coisas complicam-se quando queres compartilhar essas experiencias com os outros: nem todos têm porque estar de acordo contigo e com os teus parâmetros éticos…” isto foi escrito em 2002 ainda o 8a.nu não era o que é hoje.

Um bloco é definido pelo arranque, a linha em si e a saída. Vamos então começar pelo arranque. isto é, as presas do começo.

Arranque. Jamie Emerson: “O primeiro ascensionista ganha o direito, por ser o primeiro, de determinar onde e como o problema deve começar”. Hector del Campo: ” A regra número um para todos os escaladores deveria ser a seguinte: o respeito pelo trabalho do abridor”.  Assim, o primeiro ascensionista dita a maneira de começar, isto é, as presas exactas. Se começarmos acima estamos a roubar, se começarmos abaixo estamos a acrescentar ao problema original. Qualquer começo que não seja o do primeiro ascensionista e o escalador estará a escalar outro bloco. Portanto o interessado em repetir um bloco deve informar-se, ou pelo menos esforçar-se nesse sentido, com exactidão de como começar o problema. Um exemplo: o Rosa Negra cs, na Pedra do Urso, foi originalmente escalado a começar sentado quase deitado na laje “sikada”, e graduado nessa perspectiva, no entanto existe a possibilidade de começar sentado vários movimentos mais à frente e sempre sentado, tornando difícil de perceber sem informação adicional onde começa o bloco.  Aceitar esta regra na sua verdadeira acepção é um bom sinal de maturidade para  um escalador de bloco.

A linha em si. Aqui a imitação do primeiro ascensionista deve parar e o escalador deve ser livre para interpretar a rocha e descobrir a sua própria sequência. Pode no entanto dar-se o caso de o problema ser eliminatório, o que acontece onde menos se espera. Um exemplo? O famoso The Force (V11) em Yosemite é um problema eliminatório aberto por Jerry Moffat, aparentemente eliminando uma presa comum ao bloco vizinho, o não menos famoso Thriller. Fazendo o bloco com as presas todas está  cotado de V9 e é  conhecido como “The Farce” e é de facto uma farsa quase comédia de enganos que dá que pensar. Podemos ser a favor ou contra os problemas eliminatórios  mas devemos sempre tentar perceber aquilo que nos propomos escalar, sendo este um exemplo flagrante da importância da informação prévia para  quem se propõe a repetir algo. 

A saída. O primeiro ascensionista também define a saída de um problema.

Questões variantes:

O chão. Jamie Emerson: ” parece óbvio que se existe uma regra no bouldering é que o chão está fora. Um dia passado na maioria das áreas de bloco pode talvez sugerir exactamente o contrario” , corrosivo no mínimo. Tal como definido no artigo dos começos sentados uma vez o rabo levantado, o chão está fora, ou no caso dos começos de pé : uma vez o ultimo pé levantado, e o chão está fora também. Portanto um toque com o pé na crash ou numa pedra ou num companheiro e a ascensão não deverá ser considerada.

O nº de crashs. Quantas crashs se devem usar no arranque? Em Font dizem: nenhuma, mas depois saltam para as presas em muitos blocos, pelo que as considerações éticas são quase locais. O bom senso dirá  uma crash, ou seguir mais uma vez o método do primeiro ascensionista. E no caso de não chegarmos às presas? Héctor del Campo responde: ” se na verdade não chegas às presas e queres provar o bloco na mesma , adiante, mas tem em conta que não escalaste exactamente o mesmo bloco”.

Altura e comprimento. Temos ainda a questão se linhas como o Ambrosia em Bishop ou o Wheel of Life nas Grampians, Austrália,  um alto de mais outro mais longo que muitas vias de desportiva, são de facto problemas de bloco. Aqui, como já foi anteriormente discutido, se existe uma verdadeira “no fall zone” deve ser considerado um solo integral como é o caso, já o “wheel” a discussão é mais se deve ter grau de bloco ou travessia ou mesmo de via, e hoje em dia parece que estabilizou como um bloco com cotação de via, o que parece apropriado para um monstro de mais de 60 movimentos.

Algumas destas questões são nebulosas, outras transparentes como a água, mas importantes para a evolução da actividade. Hoje em dia é possível assistir à destruição destas regras quase em directo graças a massiva mediatização videográfica, as vezes vemos mesmo autênticos tiros no pé. Um pequeno exemplo, sem ferir susceptibilidades e apenas o refiro  porque tenho um conhecimento exacto do bloco e este é neste momento um bloco de referência numa zona central da Península. O problema Atila em Hoya Moros, tem um começo sentado, bem  definido pelo seu primeiro ascensionista, Miguel Rosón,  no entanto nunca vi um vídeo onde os escaladores começassem sentados esse problema, que conta com inúmeras repetições. Muitos não só não repetem o problema como o decotam por cima. Fizeram um bom esforço e uma escalada válida e com mérito, mas, e não sou eu que o digo, escalaram outra coisa qualquer que não o Atila.

Estas regras são algumas das chamadas “regras não escritas” do bloco, no sentido em que não são dogmáticas, devendo a liberdade pessoal ser a base de toda a escalada. Mas como diz Héctor quando pretendemos perante uma “comunidade” reivindicar alguma coisa ou afirmar que fizemos isto ou aquilo, temos de aceitar as regras do jogo. Fazendo um esforço por respeitar as primeiras ascensões e se possível melhorar eticamente  ou desportivamente o que já está feito, pois assim estaremos a contribuir para uma evolução da escalada e talvez mais importante a utilizar a escalada como veículo para uma evolução pessoal. SM

11 Responses to Problema de Bloco. Uma definição.

  1. crash pad dummy diz:

    bravo! Boa apresentação do problema. Mas penso que tudo ficou dito com a transcrição do Héctor del Campo: partilhar resulta em refutação. Seja como for, e penso que tudo isso ficou subjacente numa discussão anterior, o grau é só uma muleta para potenciar o divertimento e o mesmo acontece com o problema de bloco. O problema, com os seus pés, tronco e cabeça, é o ponto de partida para o disfrute, não deve limitar o escalador. Este último, por outro lado, deve ter inteligência ou franqueza suficiente para saber o que faz ou fez.

    Chuta mas é filminhos!

  2. FCS diz:

    É sempre bom aprender alguma coisa, sobretudo quando está bem escrito.

    Só duas notas. O John Gill não inventou “isto”… inventou “isso”. A outra, “ascensionista” soa estranho para uma via e ainda mais para um bloco.

    Como em vez do Heitor e do João, ando a ler o Fernando, ocorreu-me que um bloco sendo um problema, quem o resolve é uma espécie de Dr. Abílio Quaresma dos mistérios petrificados. Assim sendo, deveria também chamar-se a esse escalador, como ao Dr. Quaresma, um “Decifrador”. Denominação que, com uma predominante tónica no músculo cerebral, não deixaria de ser um elogio para os homens da pedra.

    abcs

    • nortebouldering diz:

      Ora bem, usei “isto” no sentido de o gajo que inventou “isto” do bloco moderno, “isso” pode ser mais correcto mas soava quase a brasileiro não? Já ascensionista temo que não haja outra palavra e temos de aguentar com ela quer para um bloco como para um oito mil, claro que neste artigo por inerência do mesmo existe um abuso da palavra mas não encontrei escapatória ao termo.
      É sempre mais edificante ter por companhia o Fernando. Se bem, e como o comprovaste, podem os três dar as mãos e formar um estranho trio a dançar neste tugúrio virtual.
      Sem duvida que “decifrador” é elogioso, e um excelente termo ou denominação.

    • Pedro Rodrigues diz:

      Apesar de me parecer que é um termo que nunca vingará entre nós, sem dúvida me parece melhor epíteto que alguns neologismos/estrageirismos frequentemente usados, como “aperturista” (que me perdoem os adeptos de um estilo mais Queirosiano). Aliás, se não me engano, esta terminologia foi recentemente utilizada no contexto de um dos pasquins da NBabugem, como referência às capacidades de perseverança, imaginação e acuidade visual necessárias para criar alguns problemas menos óbvios. Apesar do substantivo soar a irónico, o verbo adequa-se muito bem. Em suma, não poderia estar mais de acordo com este reparo.

  3. Paulo Roxo diz:

    John Gill foi decerto o tipo que elevou o boulder ao seu expoente máximo desportivo, popularizando-o.
    Mas, historicamente, o boulder foi extensivamente praticado no inicio do século XX em Fountainebleau, onde existem problemas graduados desde os anos 30.

    Ou estarei a mandar uma granda patacoada? 😉

    Paulo Roxo

    • nortebouldering diz:

      Não de maneira nenhuma.
      O próprio John Gill tem um site na net(http://www.johngill.net/) altamente instrutivo e meticuloso que aconselho vivamente a quem quiser saber mais sobre as origens do bloco e onde tem um capítulo só dedicado às origens do bouldering. Do qual trancrevo este interessante paragrafo:
      “Where and when did documented bouldering start? Some think it began with Chris Sharma in the early 1990s. Others believe it started with me in the 1950s. Still others think that Pierre Allain and his ‘Bleausards initiated the sport in the 1930s. In fact, climbers were scrambling about on boulders in Fontainebleau as early as 1874. Does scrambling and easy climbing on boulders constitute bouldering? If so, then the ‘Bleau climbers may have been the first to document an appreciation of the sport.”
      Um pouco mais à frente:
      “A more serious version of early bouldering – and one not restricted to a particular area, such as Fontainebleau – appears to have started in Great Britain in the 1880s, championed by Oscar Eckenstein – a short but sturdily built gymnastic climber capable of one-arm pull-ups. Aleister Crowley speaks of Eckenstein doing a problem on the Y-Boulder in the Lake District that other excellent climbers could not do – to my mind this is evidence of a more sophisticated competitive environment, eclipsing the role of bouldering as merely training for the mountains. Eckenstein may well have been the first true master of the sport : a climber who not only sets new standards of difficulty, but contributes in a substantial way to the evolving philosophy and practice of bouldering.”
      Em minha opinião John Gill inventou o bouldering moderno, com a introdução do magnésio e a abordagem desportiva como um fim em si só e a concepção das escaladas como “problemas”. Fontainebleau, em minha opinião mais uma vez, funciona em circuito fechado com as suas regras éticas muito próprias, que se consomem quase domesticamente, e bem, dado o gigantismo desse próprio mundo que o torna auto-suficiente. Se a origem do bloco moderno estivesse em Font escalaríamos de maneira bem diferente nas nossas próprias zonas.

  4. Pedro Rodrigues diz:

    Presumo que este texto vem um pouco na sequência da conversa que tivemos há uma semana, após teres repetido o Picaranha usando exactamente o método de quem o abriu.

    A verdade é que sempre pensei que não ligava muito a estas regras, até reparar que me faz muita confusão (não me chega a irritar, pois não tenho um espírito competitivo que me leve a tal ponto) ver alguém a fazer um CS “traficado”. Em Espanha é algo comum ver-se isso. A partir de então interiorizei que na verdade sigo bastantes destas regras. Outro momento em que me apercebi deste facto, foi quando antes de ir para Fontainebleau me disseste “Atenção que lá é válido “swingar” (balançar), senão vais-te ver à rasca nalguns inícios em pé”. De facto cá não temos muito esse hábito.

    Depois da dita conversa, pensei um pouco sobre o assunto. A maioria das coisas que explanaste fazem sentido e sem dúvida foi interessante ver-te a repetir um V10, só por causa de um detalhe. Ainda assim, o facto de o teres repetido com relativa facilidade, retira muito mérito à tua atitude. Aliás acho que o fizeste por puro exibicionismo e não por qualquer tipo de hombridade. 😉

    No entanto, há um detalhe no raciocínio que descreveste que me deixou a pensar, pois não quadra. As presas de início de mãos são as definidas por quem fez o primeiro encadeamento. A partir do arranque é como dizes “Game ON”, podes fazer o bloco como queres, eliminado presas, lançando, tendo apenas que se fazer a saída original. Assim, todas esta lógica pode ser limitativa para o repetidor, caso este tenha uma estatura diferente. Ou seja, uma pessoa mais alta pode ter tendência a querer roubar um passo, porque morfologicamente lhe é mais conveniente. Uma pessoa mais baixa pode não conseguir chegar a uma das presas de arranque. A regra das presas de mão aceito sem problema. No entanto pergunto porque será que se convencionou que os pés de arranque são livres? A única resposta que encontro é a de que, para não inviabilizar completamente o movimento de arranque a pessoas com estaturas diferentes, considera-se “válido” que estas se encaixem confortavelmente no início do problema. Mas pergunto, isto não é contraditório? Não deveriam as presas de pés ser também obrigatórias? E no caso de pessoas mais altas que num CS chegam com um dos pés a uma prateleira?

    É apenas uma pergunta tonta, mas a resposta tem algumas implicações. Por exemplo, o número de crashs no início é algo irrelevante, pois por esta lógica podes colocar o número de crashs que queiras para estar confortável no arranque (aliás é o que se passa comigo algumas vezes pois sou baixo; o facto de ter mais uma crash não me facilita o problema). Já dizia Judas Escadote quando lhe perguntaram se nunca tinha falhado: “Com duas crashs não”.

    • nortebouldering diz:

      A questão do Picaranha é um caso pessoal, que não faz muito sentido estar a discutir aqui, mas já que abordaste a questão. Há muito que queria repetir esse bloco da maneira original, só que não era uma prioridade e não surgiam oportunidades, nesse dia surgiu a oportunidade e resolvi experimentar e ficou feito. Era apenas uma pedra no sapato. Nunca faço nado por exibicionismo, e se ficaste com essa sensação, peço desculpa, aliás, porque detesto que façam o mesmo comigo. Teria feito o mesmo se estivesse sozinho. Lá está era uma questão pessoal e de todo era a minha ideia arrasta-la para aqui como um exemplo.
      A questão das presas de pés. Definir as mãos já pode ser difícil e confuso, os pés pode ser mesmo impossível, pois podem ser colocados em aderência ou encostados o que multiplica as opções quase ao infinito e é suposto estas regras manterem as coisas simples e não mais complicadas. Podem sempre ser colocadas as questões mais bizarras, por exemplo, porque não começar um bloco a fazer o pino. A questão das crashs é uma questão chata, também a mim me custa aceitar a lógica do Héctor del Campo, mas sou forçado a dar-lhe razão.

      • Pedro Rodrigues diz:

        Agora fizeste-me rir à brava! Mas achas mesmo que estava a falar a sério?!? Algum dia ia pensar que repetiste o bloco por exibicionismo? Estaríamos bem arranjados, se assim fosse… Estava apenas a ser irónico, porque precisamente sei que nunca o farias por exibicionismo, mas por uma questão de ética muito pessoal que tens a escalar. Aliás, foi essa atitude que apreciei! Além do mais, só queria brincar com a facilidade com que a repetição te saiu. Bem, há que ter cuidado com o que se escreve…

      • nortebouldering diz:

        Há dias assim, tudo parece a sério… quando o sentido de humor anda precisamente ao nível das presas dos pés…Acho que só Jesus Crux poderá determinar se foi um caso de exibicionismo ou não…

      • crash pad dummy diz:

        …olha o menino, a ironizar… o que nos reserva o futuro?

        …e se não se atribuisse nome, nem cotação aos problemas de bloco? E se fosse omitido o nome do decifrador/ascencionista e a data do feito? Hã? Já me estou a imaginar a (re)limpar uns blocos na Pedra, a subi-los e a pensar: “_ Que bela coreografia me proporcionou este pedaço de rocha, será que é mais dura que aquela outra que dancei ontem?”.

        …já houve tempos em que o bloco na Pedra era isso, dançar até cair para o lado para depois esquecer os nomes das músicas…

        Chegar ao ponto de ter de pôr o pé ali e a mão acolá ou ter de levar a “crash” oficial para arranques sentados, leva-me a pensar noutra coisa igualmente relevante: liga de arbitragem do bloco.

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