Vroummm!! O som rouco do motor do velho Renault 11 do Rui Pimentel corta o silencio sepulcral da Serra do Soajo, ao mesmo tempo que uma nuvem gigante de poeira, vai assinalando a nossa passagem com um longo traço de pó na paisagem.
Estávamos, pela primeira vez, a caminho da Peneda, mais concretamente da Fraga da Meadinha e na bagageira levávamos todo o tipo de material e aspirações. Dois arneses integrais e dois de cadeira, pés de gato de cordões e bailarinas ninja, stopers, pitões, excêntricos e tricams, martelos, capacetes, estribos, joelheiras e friends, cordas simples e duplas, cintas curtas e cintas longas e por fim surtidos de mosquetões variados. Na realidade não fazíamos a mínima ideia ao que íamos.
A fama da Meadinha era tremenda – uma espécie de bicho-papão para os escaladores do Porto -. Tal como a pesca, a escalada de aventura vive muito de enfatizações. São criados monstros e adamastores que fazem da antecipação e preparação para as escaladas etapas tão memoráveis como a própria escalada em si. E, para o processo ficar completo exige-se uma desmitificação em ordem a superar o mostro e cavalgá-lo a posteriori. Mas para chegar aí é preciso sofrer, e muito, como estávamos prestes a descobrir.
Chegados à imponente praceta do santuário, rapidamente montamos o nosso estendal, sentindo sobre nós a sombra da tremenda parede, que mal nos atrevíamos a olhar de frente. Timidamente pegamos no croqui, e tal como na ementa de um restaurante demasiado caro, escolhemos o prato da direita para esquerda, olhando primeiro para os graus e só depois para as vias. E, o cardápio marcava para a nosso dieta: uma das vias do Irmãos Pacheco, V+/A0, mesmo no extremo direito da parede. “Ok! V+/A0! isto parece fazível” dissemos muito satisfeitos com a nossa sábia escolha.
Começamos a equiparmo-nos e optamos pelos arneses integrais. Tinham-nos dito que para o artificial eram do melhor,” ficas como um bebé!”, e logo nos imaginamos a cruzar um tecto confortavelmente metidos numa espécie de berço, “até deve dar sono!”. Depois, começamos a pendurar toda a espécie de quinquilharia que achávamos necessária, capacetes incluídos, mais água e comida. Faltava escolher os pés de gato: uns Boreal fire de cordões ou umas bailarina ninja? Indecisos, decidimos levar os dois, nas placas escalaríamos de ninja e nas fissuras de fire. Contentes, com mais esta sábia decisão, fizemo-nos ao caminho com toda a quinquilharia a tilintar.
O caminho empedrado é muito bonito, mas sobe e sobe e não para de subir. E, numa tarde de Julho parece subir ainda mais. Exaustos e a suar em bica chegamos à base. Segundo o croqui teríamos de ir para a direita até ao fim da parede. Olhamos, e vimos uma zona de mato cerrado com muito mau aspecto “ups! parece que vamos ter de nos meter ali!”
“É fácil! Deve ser sempre a direito pelo meio do mato!”. Começamos a embrenharmo-nos no matagal, e este ia ficando cada vez mais denso. Ora um friend ficava preso. Ora uma das cordas ficava presa nas silvas. Até que se desatavam e começávamos a lutar wrestling com ramos, silvas e friends, acabando sempre vencidos e embrulhados nas nossas próprias cordas. Para cima, para baixo, contornando pedras e evitando árvores. Movíamo-nos à velocidade de cruzeiro de cem metros por hora. Desesperados, tentávamos chegar à base das vias,” hum, não deve ser esta, não bate certo!” e voltávamos para baixo. Até que nos perdemos, naqueles túneis de javalis. Arranhados, esfolados e esfarrapados, passamos a ter como principal objectivo sair dali para fora.
Quando finalmente vimos, literalmente, luz ao fim do túnel, já era demasiado tarde para tentar o quer que fosse.
Tínhamos aprendido duras lições, os arneses integrais foram postos de parte para sempre, uma mochila passou a fazer parte do material de aproximação e começaríamos a explorar a parede pelo lado esquerdo. E, principalmente, ganhamos uma aversão ao mato que nos ficou para sempre.
Decidimos deixar de parte a Meadinha por uns tempos e no dia seguinte iríamos escalar a Nédia, que ostentava e ostenta ainda o estrondoso título de maior parede portuguesa, onde nem suspeitávamos que iríamos viver um dos maiores épicos das nossas vidas. SM
Excelente memória do tempo das lendas e mitos. Estará hoje a escalada demasiado democratizada?
Abraço
Sesa
A Peneda está hoje mais domesticada, mas penso que ainda é “terreno de aventura” para usar a feliz designação francesa. A questão é complicada. O acesso à informação é hoje avassalador, a qualidade dos materiais é incomparável, a facilidade de acesso também, e à medida que as pessoas falam cada vez menos umas com as outras (cara a cara) é mais difícil de serem criadas as famosas enfatizações. Nesse sentido existe uma perda. Aos poucos vamo-nos desumanizando. Mas as pedras e as paredes permanecem ( mais ou menos ) as mesmas, as aventuras continuam a ser possíveis, e são muito mais fortes quanto maior o grau de inocência dos escaladores. A inocência é uma coisa rara, e quando se vai embora nunca mais volta. Só nos restando a busca do tempo perdido. Obrigado pelo comentário.
mas o mais aborrecido foi teres dado cabo das calças de spandex rosa, que tinhas comprado na véspera na ForteSport…
Nada de spandex, repara bem na foto… calças de brancas de karaté, como bons discípulos de discípulos de Meyers…
Mas a referência à ForteSport é impagável…a mítica loja da Rua de Sá da Bandeira, embora a Casa Coelho um pouco mais abaixo, com o seu material de campismo e sortido de facas e navalhas diversas fosse bem mais apetecível.
aguarda-se a história da Nédia… mais uma bela descrição, o que já vem sendo um hábito.
“Naquele tempo, só de pensar na Meadinha, até conseguia ver as gotinhas de suor a surgirem-me nas palmas das mãos!”
Frase emblemática de Paulo Gorjão.
“Eu subi isto só para te dizer que se quiseres continuar… vais sozinho!”
O mesmo Paulo Gorjão, no tempo em que os animais falavam, dirigindo-se para o Emilio, depois de ter escalado em segundo de cordada o primeiro lance da “Directa dos tectos”.
“Foi ali que eu desisti de escalar”
Ainda o Paulo Gorjão ameaçando abandonar a sua religião, sob o efeito das primeiras experiências na Meadinha.
Paulo Roxo
Acho que já ganhei o dia, só de imaginar o Paulo Gorjão a dizer: ” Foi ali que eu desisti de escalar”.
Boas.
Vi que falaste de viajar com o Rui Pimentel. É o mesmo da TOP30? Se sim, podes dar-me um mail para poder contactá-lo. É um conhecido de à alguns anos e perdi contacto com ele. Gostava de mandar um abraço e saber como vai.
Obrigado.
geral@top30.pt
Boas,
A nédia é uma placa gigante um pouco mais á frente da meadinha??
Nós tivemos na meadinha na semana passada, pela primeira vez e acaminho de dos arcos vimos uma brutal parede que se erguia dos vales, será essa?
Abr
Viva, sim claro, não há que enganar, é mesmo essa.