Camp Four, Yosemite. Se este é um dos centros do mundo da escalada, o centro do próprio campo é centro do mundo do Bloco, pois é lá que está o boulder mais famoso do mundo: o Midnight Lightning, situado no Columbia Boulder.
As manhãs são lentas, a maior parte do campo está à sombra até tarde e à sombra em Yosemite faz frio, um frio de rachar a partir de Outubro. Acendem-se algumas fogueiras das cinzas da véspera e o café começa a ferver nas cafeteiras.
Do meu campsite vejo um tipo seco, alto e de cabelos compridos já bem grisalhos. Umas calças rotas e uma t-shirt sem mangas associadas a um olhar fixo na acção em volta do Midnight Lightning indicam tratar-se de um escalador, como de resto seria de esperar aqui. Aproximo-me um pouco do bloco e a personagem volta a chamar-me a atenção, um bigode tipo Frank Zappa, e uma cara enrugada como um pergaminho onde brilham uns olhos metálicos. Merda! É o Jim Bridwel! Exclamo para mim mesmo, enquanto uma súbita e estúpida emoção apodera-se de mim. O meu primeiro impulso é ir cumprimentar o homem como um fã que vai pedir um autografo ao seu ídolo. Ridículo. Resisto a este impulso, mas fico estático como se tivesse sido atingido por um raio.
As estrelas da escalada, não me causam grande impressão. Mas o Jim Bridwel é o Jim Bridwel. Não é o que escalou ou deixou de escalar, é a personalidade, as aventuras, uma espécie de modelo da escalada beatnik e politicamente incorrecta ou mesmo insurrecta. A personificação da liberdade da escalada. E, uma espécie de personificação deste lugar, não uma personificação new age em que se transformou o Ron Kauk por exemplo, mas uma espécie de símbolo vivo.
O bloco tem ainda uma particularidade, um “lightning bolt” desenhado com magnésio que aparece misteriosamente todos os dias desenhado de fresco. O efémero magnésio tal como a escalada de circunstância e perseguidora de graus necessitam de uma renovação constante para se perpetuarem no tempo. Já a presença de Jim Bridwell envelhecido é uma imagem viva do espírito da escalada onde cada ruga esconde uma história, numa face que se confunde com a própria história da escalada.
Existe um cartaz, que infelizmente não tenho, em que ele aparece em primeiro plano a acender um cigarro, sempre Camel, e em pano de fundo uma montanha, uma das suas últimas ascensões talvez. Esta imagem, de uma provocação extrema, traduz na perfeição o estilo indomável que sempre o caracterizou, principalmente numa América que parece voltar ao puritanismo original e onde fumar se confunde com o pecado capital da religião/culto da eterna juventude. A imagem parece dizer: o alpinismo é viciante e prejudicial para a saúde, o que não deixa de ser verdade.
Alguém disse que um escalador é um semideus quando as suas vias não são repetidas durante dez anos e um deus quando passam mais de 20 anos sem repetição. O Jim Bridwell encaixa provavelmente na segunda parte e para isso muito contribui vias como a The Dance of the Woo-Li Masters na face Este do Moose’s Tooth no Alasca escalada no fim do Inverno de 1981, em estilo alpino e em apenas 3 dias, que, claro está, nunca foi repetida.
Deuses, semideuses, monstros e lendas vivas. Tal como todas as actividades humanas a escalada tem o seu próprio panteão e os seus heróis, uns por direito próprio outros atirados para lá por mecanismos mediáticos. São referências que cada um escolhe e cola na sua caderneta de cromos pessoal, e que acabam por constituir uma teia de mitologias pessoais que nos servem de marcos para superar ou simplesmente percebermos a nossa terrena condição.
Estas lendas deviam viver para sempre num lugar ficcional ideal, uma espécie de terreno onírico onde a nossa imaginação as projecta. Mas, a realidade é como uma locomotiva furiosa para a qual o terreno dos sonhos é mera paisagem. E, a realidade económica em 2010 é das piores de sempre. Jim, agora com 64 anos, parece agonizar em dívidas, talvez vitima da aguda crise que se abate sobre os EUA e o Mundo. Acabou de ocorrer uma espécie de festa de beneficência em Joshua Tree a que chamaram Bridwellfest com o objectivo de angariar 10.000 USD para ajudar a família a fazer face às suas obrigações. Os amigos constituíram um fundo para donativos e organizaram uma espécie de leilão com todo o seu material autografado, uns pés de gato usados com assinatura personalizada são vendidos a 50 USD por exemplo….
A decadência, é terreno fértil para sábios de ocasião tecerem das suas confortáveis poltronas comentários acerca de possíveis “planos de poupança e reforma”. Mas ppr’s e jim Bridwel de certeza que são palavras incompatíveis. Ele vive ou viveu o momento fazendo acontecer coisas impossíveis e tão improváveis como um relâmpago atingir um bloco precisamente à meia-noite.
O relâmpago nunca chegou a atingir o bloco, mas o improvável aconteceu, e acontece, muito por culpa dos deuses da escalada. SM
bom demaaais esse seu post!
essas sim são as verdadeiras lendas!
Uma lenda viva!!
Excelente post!
Realmente faz falta umas passagens históricas para colocar a nossa actividade (com todas as suas variantes) em perspectiva. Textos como este são o verdadeiro contributo para a valorização da escalada.
Parabéns.
Paulo Roxo
Grande Roxo
Já não falamos há mais de 8 anos!!! Manda-me um email para ricquintas@live.com.pt se puderes, gostava de te ver. Muito bom saber que ainda andas ai a elevar o nome de Portugal em matéria de escalada… Tudo de bom
Ric Quintas
é um prazer ler artigos como este.
muito bom sérgio!
O Bridwel é o maior!!uma personagem incontornável do mundo da escalada.
aconselho vivamente a leitura do seu livro “Histórias de escalada” 5 estrelas
abraço,
topas
Benga aí mais posts destes!
Cultura vertical nunca é demais e tb não ocupa lugar,já dizia a minhã avó 😀
Abraço
Rodas
Inspirado e inspirador, muito bom mesmo. Alta mente.
abc
Duma historia de nada, se faz uma bela história. De uma notícia aparentemente inconsequente, se põe o pessoal a pensar.
Abr
Boas recordações trás a história do boulder do raio, e sem duvida Bridwel, a par de Cassin (que já não é possível) dos poucos escaladores de quem gostava de ouvir uma histórias.
Aquele abraço
João Animado
Li em tempos um artigo de um escalador que havia escalado com Bridwell que havia aprendido a escalar com Laytor Korr que havia aprendido a escalar com Royal Robbins (…)que havia escalado com Whymper. Era como se estivesse a escalar com todo o passado da Escalada personificado numa pessoa. Não consigo encontra esse artigo para transcrever o paragrafo que era excelente, tão bom como este relato do Sérgio Martins.
Abraço e parabéns pelo Nortebouldering.
Rosado