Recordações da Época Passada. Nós Eramos os Machacas.

 Nós Eramos os Machacas

Sérgio Martins, Rui Pimentel, Rui Abreu, Martinho Almeida, Oldemiro Lima…

Uma via que já não existe, As 750 Divergências Filosóficas (6c+), dura, dura de roer. Encadeá-la era a senha para entrar no grupo. Nós éramos os “machacas”.

 O local era o mais improvável para uma escola de escalada. Em plena cidade do Porto entre o Bairro do Aleixo e o Rio Douro, uma antiga pedreira deixava à vista um granito saibroso vermelho único, que produzia vias também elas únicas, difíceis e bizarras como nunca mais conheci nenhumas. Um sítio urbano, sujo e perigoso. Mas, adorávamos aquilo, o lixo, a colher abandonada pelo junkie, os insultos de quem passava…eram rapidamente esquecidos quando nos embrenhávamos nas contorcidas sequências de escalada.

 Hoje já nada disto existe. A rua foi remodelada e a falésia estabilizada. Uma rede de aço cobre tudo deixando ainda à vista os velhos spits como testemunhas petrificadas.

 Mas, onde fomos buscar tal nome e o hábito de “machacar” vias?

 Agosto. Uma carrinha volkswagen com mais de 30 anos – incendiou-se passado umas semanas da viagem -, cinco mil quilómetros pela frente. Tudo a postos para o nosso primeiro tour de escalada por Espanha.

Ao fim de mil quilómetros, muitas peripécias e três dias de viagem chegamos a Montserrat. Porque fomos directos para esta zona e não outra? É algo de que já não me consigo lembrar, mas visto a esta distância parece que fez todo o sentido termos aterrado ali em plena praça central, no meio de mil turistas numa tórrida tarde de Agosto.

A estrada que levava ao parque de campismo estava encerrada devido a uma derrocada recente, por isso, armamos logo ali um circo impressionante de mochilas, tendas, cordas e literalmente dezenas de sacos de supermercado. Tudo nosso. Empacotadas as tralhas, estávamos preparados para uma semana inteirinha de estadia.  

Instalamo-nos e aos poucos fomo-nos apercebendo que aquilo não era um camping normal, era antes um “sítio” onde a escalada estava entranhada. Incrustada na madeira, escavada nas pedras dos muros, só faltando estar envolvido por uma nuvem permanente de magnésio. Locais assim existem muito poucos no mundo, digamos que, literalmente gerações de escaladores locais e legiões de visitantes moldam-nos, dotando-os de uma identidade própria e subtraindo-os a um destino banal.

Foi uma sorte conhecer um sítio assim logo na primeira viagem de escalada. As vias não deixaram grandes recordações mas o ambiente e as personagens ficaram marcados a fogo.

O nosso espaço, rapidamente ficou uma espécie de pocilga. Uma mesa permanentemente montada com, fogões, restos de comida, tachos e panelas que raramente viam a água. Bom, uma noite choveu e o que estava em cima da mesa e interessava preservar, passou para baixo. O resto ficou em cima a lavar. Simples. Mas, algo lamacento.

Ao nosso lado estava uma escalador Italiano. Sempre impecável, bandolete no cabelo cortado com estilo e trajes imaculados. Todas as manhãs, cumpria um estranho ritual: saía da tenda e, a primeira coisa que fazia era retirar os pés de gato de dentro e deposita-los com extremo cuidado e precisão no vértice do iglu. Uns magníficos e brilhantes La sportiva Kendo, ficando, por momentos, a olhar para eles embevecido. E nós, acabados de acordar, todos javardos, ficava-mos ali a olhar para aquilo, enquanto íamos tomando café, embasbacados. 

O dono ou guarda do antro chamava-se Marcel Millet, ele próprio uma personagem carismática da escalada Catalã. Conversador, produzia a cada duas frases uma história única, pejada de ideias fortes e controversas. Por aquela altura fazia muita escada artificial e estava justamente a recuperar de um acidente derivado de uma queda numa via nova que estava a abrir. Teria partido as pernas ou algo assim. Gostava de usar ditados ou máximas de ocasião e houve um que nunca esqueci e que vim eu próprio a sentir na pele algumas vezes: “ Quién mucho va a escalar, el hospital va a visitar”. Não aprecio muito este género de sentenças proféticas mas o facto é que ele próprio já tinha visitado o hospital muitas vezes e eu algumas vezes vim a visitar também. Noutra visita que fiz a Montserrat anos depois, vi-o a passar caminho acima com uma enxada ao ombro e um filhote de 3 ou 4 anos pela mão, “Viva, onde vais?” perguntei, “ desenterrar blocos!” respondeu,” estou a fazer um circuito de bloco infantil para o meu filho”. “ há…., pois!”. 

Uma zona do parque rapidamente ganhou para nós contornos magnéticos: a casa de banho. Ok, não a casa de banho em si, mas os muros em redor. Estavam escavados com presas e marcados com vias em código de cores, oferecendo travessias de escalada de todos os níveis. E, ao fim da tarde, também nós, cumpríamos o ritual de ir escalar lá, atraídos pelo circo que ali se formava. Ficávamos a ver o pessoal a fazer as travessias, tentando também entrar na dança, mas, reparando imediatamente que éramos dotados de dois pés esquerdos. Uma personagem chamava particularmente a atenção: rabo de cavalo, seco e musculado – tal e qual aquelas personagens dos cartoons do Manolo que sairiam na revista Escalar anos depois –  executava uma travessia baixa, cheia de passos bizarros e estranhas contorções com notória fluidez. Ia, vinha, ia e tornava a vir, sem nunca se cansar. Curiosos, perguntamos ao Marcel, “Quem é?” ele olhou para nós, reflectiu um pouco e respondeu “ Es un Machaca”.

8 Responses to Recordações da Época Passada. Nós Eramos os Machacas.

  1. Pedro Rodrigues diz:

    Está reavivado o culto… bom texto.

  2. Nuno diz:

    Parabéns, este blog continua a manter uma qualidade e um periodicidade de posts muito boas!
    Deixo aqui a lenda colombiana da Machaca: (desculpem estar em espanhol mas o pessoal da escalada esta habituado)

    En colombia existe ena leyenda que hizo carrera incluso en la curia, es llamada “La Machaca”. Todo empezó hace muchos años en un pequeño pueblo del Putumayo el cual celebraba las fiestas anuales, un par de periodistas que fueron enviados a cubrir la nota llegaron un día tarde a la dichosa celebración y no teniendo que decir a sus editores iniciaron un periplo por el pueblo tratando de descubrir algo que fuera interesante, la suerte les llevo a una pequeña exposición de artesanos los cuales exponían y vendían entre muchas cosas mochilas, vasijas, collares, en fin… entre aquellas cosas los periodistas encontraron un insecto que nunca habian visto antes, y preguntaron ¿qué era eso?; el vendedor no se sabe de donde o porque, les dijo que se llamaba La Machaca (Fulgora lanternaria) y que era un bicho muy peligroso, porque su picadura era mortal.

    La única forma de evitar morir era hacer el amor dentro de las 12 horas siguientes a la picadura. La historia la contaron por el periódico e inmediatamente se desato una epidemia de picaduras de machaca, tan así, que se reporto el caso de unas monjas que prefirieron morir antes que acudir al tratamiento.

    Esto fue hace cerca de cincuenta años y aun se habla hoy en dia de accidentes por machaca aunque con un toque de malicia y buen humor, en ciertos círculos de la sociedad colombiana. vale la pena aclarar que los fulgóridos en general son insectos totalmente inofensivos y que a pesar de las aclaraciones del caso, hechas por parte de los expertos en la materia, muchos colombianos deben su boda a este historia.

  3. nortebouldering diz:

    Bom, grande lenda colombiana. Infelizmente fomos enganados e não nos contaram essa história em Espanha, que seria de muito mais utilidade a uns pobres e inocentes mancebos.

  4. O termo espanhol machaca é atribuído a uma pessoa que treina muito, que tem um objectivo e acaba por se tornar obcecado com esse mesmo, trabalhando ao máximo para o alcançar. Acho que é um bom termo e muito bem aplicado a esses 5 aventureiros que do nada foram criando alguma coisa.
    O texto está simplesmente fantástico, parabens!

  5. Psico diz:

    Realmente, tenho que concordar com o Nuno!

    Desde o início que acompanho o vosso blogue e não posso deixar de vos dar os parabéns pela qualidade dos textos, das fotos e dos vídeos.

    Graças ao nortebouldering, fiquei com muitas ganas de ir escalar aí ao Norte, onde não conhecia praticamente nada.

    Como é que é, quando aparecer aí será que já existem “guias nortebouldering” para me levarem aos melhores spots?;)

    Fica a sugestão!

    Saudações Extraprumadas,

    Tiago
    (Whyhesitate?)

  6. FPereira diz:

    Pelas percepções que vim reunindo, ser “machaca”, nesses tempos idos, já foi considerado como um propósito na escalada para uns e um despropósito nessa mesma vida de escalador para outros. Claro que o “machaca” dava um bom show para os seus pares e neofitos, como aliás vos impressionou, e, ao mesmo tempo que, para outros seria um “tipo” de conquista-pela-repetição algo duvidoso.
    De facto, o vocábulo existe no castelhano exactamente para caracterizar algo que é pertinaz e repetitivo. Possivelmente, mesmo o tal Marcel se apercebia disso.
    Na minha percepção da altura em que me cruzei com o termo, ser “machaca” e simultaneamente ser um escalador de espírito mais “viajero” exposto constantemente a diferentes desafios seria completamente concorrêncial. O viajero estaria quase condenado a fracassar em qualquer projecto mitrado dum machaca local e machaca sofria duras penas quando lhe mudavam o papel de cenário. No fundo são duas facetas que ainda hoje se preservam em muitos modelos de treino (o “trabalho” e o “novo-estímulo).

    Mas o que mais destaco neste post está logo nas primeiras linhas: é que, independentemente do valor ou dimensão do local que existia à beira-Douro, muita gente não sabe que a escalada não tido só crescido em número de locais. Também já houve recuos por vários motivos, seja sob as malhas de aço e do asfalto ou pior ainda, do esquecimento. Este post é um refresco.

  7. nortebouldering diz:

    @FPereira. Bom ponto. Evidentemente na altura isso passou-nos ao lado, simplesmente queríamos escalar muito e bem. E, achamos piada ao nome.
    Os espanhóis ainda têm outra expressão para um escalador muito bom, mais simpática e interessante que é “lolo” ou seja a abreviatura de Monolo o famosíssimo escalador Italiano Maurizio Zanolla ainda hoje um machaca com mais de 50 anos. É curioso que sempre entendi machaca dessa forma – simplesmente escalar bem – .
    Já a questão do “escalador que treina versus o que não treina”, é originária do início dos 80 ou fim dos 70 com o advento da escalada desportiva e os ensaios em top. Mas, naturalmente os ecos dessa divergência ainda hoje se repercutem.
    Tendo atravessado todo o espectro das actividades ditas de “Montanha”, compreendo a desconfiança e horror que um escalador “clássico” , por exemplo, terá por um escalador que repete até à exaustão um movimento. Mas essa discussão ou dilema já não se coloca – felizmente – no campo ético e valorativo. Coloca-se numa questão de gosto pessoal, na medida em que as praticas foram assimiladas e misturadas e temos hoje escaladores “clássicos” que repetem à exaustão um movimento veja-se ocaso do Tommy Caldwell por exemplo. Mas obviamente que sou forçado a concordar que o termo “machaca” poderia ter essa conotação em Espanha.

    @Psico. Obrigado. Aparece quando quiseres.

  8. Uma vez mais gostaria de dar os parabéns pelo site que, pouco a pouco, se vai tornando numa paragem obrigatória nestas deambulações

    Longe vão os tempos de escalada na Secil…

    Uma vez, vimo-nos cercados por uns miúdos curiosos que nos iam perguntando para que é que serviam todos aqueles mosquetões coloridos com umas fitas agarradas. Sem que déssemos por isso íamos ficando sem dois expressos que já seguiam por dentro de uma camisa a caminho do Aleixo…

    Tinha a sua piada ver o olhar perplexo dos transeuntes quando nos viam partilhar um pó branco com as mãos, colocando-o em seguida numas bolsas amarradas ao tronco. Malucos…

    Era uma escola urbano/industrial/agrícola depressiva perdida entre silos de cimento e silos de pessoas. No entanto, tinha algo que faltava à sua vizinha da margem Sul (Serra do Pilar): verticalidade e altura. E isso era o suficiente para nos forçar a fazer 20km rumo ao Porto.

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